SENTIMENTO NACIONAL: ‘HABEMUS SACCUM PLENUM’
Por Lorenzo Carrasco
Em meio à maior crise socioeconômica, política e moral da história do Brasil, beira o limite da irracionalidade recolocar à mesa novas tentativas de fustigamento das Forças Armadas, como têm feito elementos do núcleo radical do Partido dos Trabalhadores (PT), mas, também, funcionários do governo interino de Michel Temer.
É o caso da nova secretária de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, conhecida por suas posições favoráveis à revogação da Lei da Anistia e à ingerência supranacional da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA), para impor controles externos sobre as Forças Armadas e a segurança do Estado, sob o pretexto da defesa dos direitos humanos.
Nas F.As., prevalece um sentimento de que se encerrem definitivamente essas propostas revanchistas, que, ao impor uma visão unilateral da História, apenas contribuem para aprofundar a divisão do País.
Em realidade, as manifestações de oficiais militares expressam, implicitamente, o repúdio da maioria da sociedade ao desastre criado pela cultura “antiautoridade” imposta à coisa pública, nas últimas décadas – em síntese, um reclamo pelo restabelecimento da unidade nacional.
Uma dessas manifestações veio do general Rômulo Bini Pereira, ex-chefe do Estado-Maior do Ministério da Defesa, em um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo (7 de junho,2016). No texto, o oficial se refere a dois eventos interconectados: o balanço feito pela Comissão Executiva do PT, que incluiu entre os “erros” da gestão do partido no governo, o de não ter promovido certas ações contrárias à hierarquia militar; e a nomeação de Flávia Piovesan pelo governo interino de Temer.
Na conclusão, o Gal. Bini afirma:
“No Império Romano, durante uma campanha em terras longínquas de Roma, um legionário, ao ser questionado por um centurião a respeito das sucessivas batalhas que enfrentavam, respondeu ironicamente: “Habemus saccum plenum.” Uma referência à pesada mochila (saccus) e aos cruentos combates de que participavam. A expressão atravessou séculos e, em diversas culturas, deu origem ao popular “saco cheio”. Após quatro décadas da Lei de Anistia – que significa esquecimento -, o soldado brasileiro já esta concordando com aquele legionário romano, pois está no limite de sua paciência em razão destas preconceituosas, revanchistas e constantes cobranças ideológicas.”
Anteriormente, em uma palestra proferida em abril, em uma universidade de Brasília, o comandante do Exército, general Eduardo Villas-Bôas, já havia enfatizado que o País “está à deriva”, devido à falta de coesão interna:
“(…) Precisamos recuperar a coesão nacional e o sentido de projeto. Colocar o interesse do País e da nação acima de todas essas querelas que dominam o nosso dia-a-dia. Com relação a 1964, comparando com os dias de hoje, houve duas diferenças básicas: primeiro, era aquele período, de Guerra Fria, de posições extremadas. E segundo, em 1964 o País não contava com instituições amadurecidas, com os seus espaços de atuação definidos e cumprindo adequadamente os seus papeis. Então, hoje, a grande diferença está aí: o nosso País tem instituições amadurecidas. O Brasil já é um país sofisticado, com sistemas de pesos e contrapesos, que dispensa a sociedade de ser tutelada.”
Em realidade, o programa para o virtual desmantelamento das Forças Armadas brasileiras não foi ideia original do PT, nem dos setores políticos nos quais circula Flávia Piovesan. Foi um projeto exógeno, inserido no ideário da “Nova Ordem Mundial”, anunciada em 1990 pelo presidente estadunidense George H.W. Bush. A implementação da estratégia “desmilitarizadora” ficou a cargo do Departamento de Estado e de seus apêndices de soft power, como o Diálogo Interamericano (uma espécie de Comissão Trilateral para as Américas) e uma vasta rede de organizações não-governamentais (ONGs) de direitos humanos.
Um dos entusiastas dessa agenda foi o então senador Fernando Henrique Cardoso, um dos fundadores do Diálogo Interamericano, para o qual levou o seu futuro sucessor na Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, com a convicção de que um ex-líder sindical poderia, entre outros pontos, completar a implementação da agenda. Mais tarde, esta pauta do Diálogo foi abraçada pelo Foro de São Paulo, coordenação de partidos e organizações da esquerda ibero-americana criada em 1990, pelo PT e pelo Partido Comunista Cubano. E não deixa de ser, no mínimo, curioso que os representantes da brigada dos direitos humanos no País, particularmente centrada em São Paulo, transitem livremente entre estas organizações e aqueles principais partidos políticos.
Na reunião do Diretório Nacional do PT, realizada em 16 de maio passado, em Brasília, destinada a avaliar a conjuntura nacional frente à decisão do Senado Federal de admitir o processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff, foi emitida uma declaração de autocrítica sobre os 13 anos do governo petista.
Sem mencionar que o acesso de Lula ao poder tenha requerido a divulgação da “Carta ao Povo Brasileiro” (uma rendição à hegemonia rentista sobre a economia nacional, a qual culminou com a destinação de quase 50% do orçamento da União ao pagamento dos juros da dívida pública), os líderes petistas lamentaram o fracasso em enquadrar as Forças Armadas na agenda “desmilitarizadora”
Embora sem maioria parlamentar de esquerda, o imenso prestígio do presidente Lula e a desorganização estratégica das elites abriu espaço para poderosa mobilização nacional, que debatesse, claramente, a urgência da democratização do Estado e a remoção dos entulhos autoritários herdados da transição conservadora pós-ditadura.
Diz o texto:
“Fomos, no entanto, descuidados com relação à necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação.”
Para demostrar a falta de originalidade na referência da Executiva do PT quanto às F.As., consultemos o relatório de 1988 do Diálogo Interamericano:
‘Deve-se empreender um esforço para modificar o pensamento militar no tocante à segurança interna e a subversão. Os militares não se podem considerar guardiães finais dos valores nacionais, nem insistir em que a segurança nacional abarque todos os aspectos da política. Deve-se reformar a educação militar… A despeito da transição a regimes democráticos, o conteúdo político da educação militar continua virtualmente incólume.’
Adiante:
“No Brasil, as Forças Armadas continuam pronunciando-se em uma ampla gama de assuntos, entre eles muitos que, definitivamente, não são militares. O serviço de informações do pais e seu Conselho de Segurança Nacional são controlados pelas Forças Armadas… No Brasil, seis dos 26 membros do gabinete são generais ou almirantes da ativa.”
Mais explícito, impossível.
E não se pense que o desapreço pelo papel histórico das Forças Armadas manifestado na “autocrítica”, pela Executiva do PT, seja exclusivo de um grupo radical. O próprio ex-presidente Lula, ao sentir se acuado pela Operação Lava Jato e pelas revelações sobre a corrupção na Petrobras, ameaçou convocar o que chamou o “exército de Stédile” e os movimentos sociais liberticidas, para defender o governo petista.
Dias depois, a própria Dilma apareceu no Acampamento Lanceiros Negros do MST, junto com o “comandante” João Pedro Stédile. E recorde-se, igualmente, que o governador petista de Minas Gerais, Fernando Pimentel, condecorou o “comandante” com a Medalha da Inconfidência, a maior condecoração do estado.
É um fato que Temer tomou medidas para restabelecer a presença militar na estrutura de inteligência do Estado (área na qual o Diálogo Interamericano pretendia vedar-lhes), com a nomeação do general Sérgio Etchegoyen como ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Não obstante, a advertencia do general Bini Pereira é um chamado à coerência institucional exigida pelo momento instável e turbulento que o País atravessa.
Lorenzo Carrasco, jornalista e escritor mexicano, é analista político, editor do boletim “Alerta Político e Científico”, fundador do Instituto Schiller e do Movimento de Solidariedade America Latina (MSIA)