Reflexões sobre a tutela do patrimônio cultural da saúde no Brasil
Por Marcos Paulo de Souza Miranda *
Como sabido, neste ano de 2020 a pandemia do coronavírus, também chamada Covid-19, se abateu sobre todo o planeta, mudando radicalmente a vida de grande parte da população mundial, obrigada a alterar seus hábitos e formas de ser, de viver e de fazer a fim de evitar a contaminação pela temida e pouco conhecida doença.
Contudo, o enfrentamento de doenças e epidemias é algo nada inédito na história do povo brasileiro, que, desde o descobrimento, já se deparou com diversas delas, tais como cólera, febre amarela, tuberculose, gripe espanhola, entre tantas outras.
Não há dúvida de que a atual pandemia deixará vestígios materiais e imateriais sobre a sua ocorrência na história de nosso povo. Além de artigos de uso pessoal (como máscaras, face shields, frascos de álcool em gel etc.) que possivelmente poderão atravessar as décadas, registros em jornais e em sítios da rede mundial de computadores, alas específicas de sepultamentos em cemitérios (sobretudo nas cidades mais afetadas), registros documentais e lembranças destes tempos de sofrimento, isolamento e saudade certamente se estenderão para o futuro.
Neste cenário de pandemia, parece-nos oportuno lançarmos olhares para um patrimônio cultural ainda pouco conhecido e explorado na história de nosso país: o denominado patrimônio cultural da saúde, integrado por bens representativos das atividades humanas relacionadas à saúde no Brasil.
Na Europa, desde 1958 a Sociedade Francesa de História dos Hospitais vem buscando inventariar e valorizar o patrimônio das instituições hospitalares, o que constituiu passo importante para o conhecimento e melhor sistematização do tema âmbito mundial.
Com a evolução do conceito de patrimônio cultural ocorrido nas últimas décadas em todo o mundo, novas “categorias” de bens culturais – para além dos tradicionais monumentos edificados considerados excepcionais, têm sido identificadas pelos profissionais que trabalham na seara, a exemplo do patrimônio imaterial, do patrimônio agrário, do patrimônio hidráulico e do patrimônio industrial.
Na América Latina, as relações entre patrimônio cultural e saúde começaram a ganhar força nos últimos anos, com a realização, em Buenos Aires, em 2005 e 2008, de dois “Encontros do Patrimônio Cultural Hospitalário”, dos quais participaram pesquisadores e autoridades de diversos países com o objetivo de criar um marco de reconhecimento e reflexão sobre bens culturais relacionados aos antigos hospitais.
Conquanto de extrema relevância, cremos que a expressão “patrimônio cultural hospitalário” utilizada nos sobreditos encontros, é de abrangência restrita e reducionista, pois o patrimônio cultural da saúde, conquanto integrado em boa parte por bens e atividades relacionadas a hospitais, são se restringe a eles e nem tampouco somente à história da medicina, havendo necessidade de se alargar os olhares para outros aspectos.
No Brasil, o Grupo de Trabalho História e Patrimônio Cultural da Saúde, reunido durante a 4ª Reunião de Coordenação Regional da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS), na cidade de Salvador, no ano de 2005, evento que vem sendo considerado como um marco na discussão sobre história, memória e patrimônio da saúde no Brasil, considerou “o Patrimônio Cultural da Saúde como um conjunto de bens materiais e simbólicos socialmente construídos, que expressam o processo da saúde individual e coletiva nas suas dimensões científica, histórica e cultural”.
O conceito proposto, ao se restringir somente a bens materiais da saúde relacionados apenas a três dimensões, parece-nos, igualmente, reducionista, pois não se pode deixar de lado os aspectos imateriais vinculados à saúde, a exemplo dos conhecimentos tradicionais das parteiras, dos raizeiros e curandeiros que, de igual sorte, também se relacionam com a evolução dos métodos utilizados nos cuidados com a saúde em nosso país.
Também não se pode perder de vista patrimônios culturais menos visíveis, quase ocultos, que existem em nosso país e, na maioria das vezes, passam ao largo dos olhares dos profissionais que trabalham com a temática patrimonial.
Antigos sistemas de tratamento de esgotos (como os tanques de desinfecção de Ouro Preto-MG, construídos no século XIX) e locais de sepultamento de vítimas de antigas epidemias, doenças contagiosas e excludentes, a exemplo dos velhos “cemitérios de bexiguentos”, “loucos” e “leprosos”, merecem maior atenção e reflexões enquanto bens potencialmente carregados de valores passíveis de identificação, estudo e proteção pelo poder público e pela sociedade enquanto referenciais relacionados à saúde em nosso país.
Os instrumentos aptos à identificação, proteção e valorização do patrimônio cultural da saúde podem ser os mais variados possíveis, a exemplo do tombamento de prédios e objetos (sedes de antigos hospitais, manicômios, colônias de tratamento, escolas de farmácia e enfermagem, equipamentos utilizados para o tratamento de doenças e manipulação de medicamentos etc.), a instituição e implantação de museus, bibliotecas especializadas e arquivos públicos e privados relacionados à temática; a realização de inventários temáticos de bens culturais (a exemplo do inventário de prédios de antigos hospitais realizado na França); o registro de bens culturais imateriais envolvendo saberes e formas de fazer (arte das parteiras, conhecimentos tradicionais sobres plantas medicinais, métodos utilizados para a cura de antigas doenças etc), entre muitos outros.
É de se lembrar que o dever de adotar tais providências a respeito de bens culturais relevantes sobre a história da saúde no Brasil, por serem portadores de referência à identidade, à memória e à ação do nosso povo, toca não somente ao poder público, mas também à sociedade em geral, nos termos do artigo 216, parágrafo primeiro da Constituição Federal de 1988, que estabelece o princípio da responsabilidade solidária na preservação do patrimônio cultural brasileiro.
Ante a enorme gama de bens que podem ser selecionados, parece-nos essencial a existência de diretrizes nacionais uniformes a respeito do tema, a fim de melhor delimitar a abrangência, definir procedimentos e responsabilidades para a identificação, individualização, proteção e adequada gestão dos bens integrantes do patrimônio cultural da saúde no Brasil.
No Chile, em experiência que nos afigura como inovadora e acertada, foi instituída a “Unidade de Patrimonio Cultural de la Salud”, com o objetivo de propor ao Ministério da Saúde os lineamentos gerais pra a elaboração de uma política pública sobre o patrimônio cultural da saúde e normativas para a organização, administração e gestão do dito patrimônio.
Em nosso país, considerando que tanto a Constituição Federal (artigo 200, VIII), quanto a Lei 8.080/90 (artigo 5º, V, e 7º, X) impõem a obrigação do Sistema Único de Saúde atuar, de forma integrada, na defesa do meio ambiente (dentro do qual se insere a dimensão do patrimônio cultural) e da saúde, parece-nos evidente que o Ministério da Saúde poderia instituir um Programa Nacional de Memória da Saúde com a definição de uma política pública sobre a temática, a exemplo de outras iniciativas setoriais existentes, como o Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário, instituído pelo Conselho Nacional de Justiça, e o Projeto de Memória da Eletricidade, coordenado pela Eletrobrás.
*Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça. Especialista em Direito Ambiental. Professor de Direito do Patrimônio Cultural da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais.
Fonte: Conjur
Publicação Dazibao,16/11/2020
Edição: Ana A. Alencar