PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO NÃO É APANÁGIO PARA COVARDIAS
Para o Supremo Tribunal Federal, o Princípio da Precaução não é populista, irresponsável e irracional – exige ponderação no seu uso, nos conflitos ambientais
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
“Não há vedação ao controle jurisdicional das políticas públicas quanto à aplicação do princípio da precaução, desde que a decisão judicial não se afaste da análise formal dos limites desse conceito e que privilegie a opção democrática das escolhas discricionárias feitas pelo legislador e pela administração pública.”
Este foi escólio do voto do Ministro Dias Tóffoli, acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, ao dar provimento a recurso extraordinário (RE 627189 / SP), julgado sob o rito da repercussão geral, contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que determinara redução do campo eletromagnético de linhas de transmissão de uma concessionária de energia elétrica, fundamentado no “princípio da precaução”.
O Tribunal paulista – que possui câmara especial de meio ambiente, determinara, à luz dos artigos 5º, caput e inciso II, e 225 da Constituição, “Imposição de obrigação de fazer à concessionária de serviço público para que observe padrão internacional de segurança.” Ou seja, o TJSP queria obrigar a concessionária de serviço público de distribuição de energia elétrica, por observância do princípio da precaução, a reduzir o campo eletromagnético de suas linhas de transmissão, de acordo com padrões internacionais de segurança, por causa de “eventuais efeitos nocivos à saúde da população”…
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, foi precavido e desconstituiu o entendimento do tribunal paulista, aplicando a repercussão geral, de modo que a sua decisão passa, agora, a refletir entendimento a ser seguido em casos similares no território nacional.
Toffoli, relator do recurso extraordináio, explicou no seu voto que o princípio da precaução é critério de gestão de risco que pode ser aplicado sempre que existirem incertezas científicas sobre a possibilidade de um produto, evento ou serviço desequilibrar o meio ambiente ou atingir a saúde dos cidadãos. “A adoção do princípio”, disse o Ministro, “exige que o estado analise os riscos, avalie os custos das medidas de prevenção e, ao final, execute as ações necessárias, as quais serão decorrentes de decisões universais, não discriminatórias, motivadas, coerentes e proporcionais.”
“O eventual controle pelo Poder Judiciário quanto à legalidade e à legitimidade na aplicação desse princípio há de ser realizado com extrema prudência, com um controle mínimo, diante das incertezas que reinam no campo científico”, ponderou o relator que, no caso concreto, entendeu que não existiam fundamentos fáticos ou jurídicos a obrigar as concessionárias a reduzir o campo eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica abaixo do patamar legal fixado pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL.
Com razão o STF
Agiu com acerto a côrte suprema, afastando a nebulosidade que costuma enevoar o tema, muito querido de biocentristas e preservacionistas militantes no direito ambiental.
O Princípio da Precaução é expresso no Princípio 15 da Declaração Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, firmada no Rio de Janeiro, em 1992, que reza o seguinte:
“De modo a proteger o meio ambiente, o Princípio da Precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.”
O texto é literal e não comporta digressões proselitistas.
De fato, o princípio da precaução não guarda qualquer obscurantismo, não impõe a paralisia, e não configura censura inquisitorial. Pelo contrário, é PROATIVO. Recomenda postura corajosa face à incerteza do futuro.
Com efeito, o precavido não se encolhe. Como dito no texto da ONU, o precavido implementa medidas “eficazes” e “economicamente viáveis” para “prevenir a degradação ambiental”, ainda que não haja certeza científica sobre o assunto a ser enfrentado. O caminho da precaução, na dúvida, é adotar a prevenção e, não recolher-se à omissão.*2
A confusão entre precaução, prevenção e omissã, no direito ambiental brasileiro, ocorre não raro para encobrir a ignorância dos operadores sobre o tema.
Vale a pena iniciar pela etimologia dos termos.
Prevenção vem do Latim praevenire (antecipar, perceber previamente). Resulta da junção de prae – antes, à frente, com venire – vir. Já precaução resulta da junção do termo latino cautio (caução, garantia, cuidado) – relacionado ao verbo cavere (estar alerta, em guarda), com o termo prae (antes, à frente).
Precaver significa antecipar medidas para amenizar consequências, quando há possíveis riscos futuros – porém desconhecidos (se fossem conhecidos, seria prevenção).
Foi nesse sentido que o STF fixou a tese como repercussão geral nos termos seguintes:
“No atual estágio do conhecimento científico, que indica ser incerta a existência de efeitos nocivos da exposição ocupacional e da população em geral a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, não existem impedimentos, por ora, a que sejam adotados os parâmetros propostos pela Organização Mundial de Saúde, conforme estabelece a Lei nº 11.934/2009”.
De fato, o controle jurisdicional da legalidade e legitimidade na aplicação do princípio da precaução deve ser exercido com muita prudência – e o trocadilho é inevitável – com precaução, visando um controle mínimo diante das incertezas que reinam no campo científico – caso contrário, se estará flertando com o obscurantismo e o preconceito ideológico.
O raciocínio condiz com a conclusão da Corte Europeia de Justiça quando se pronunciou contrariamente à manutenção do bloqueio francês à carne britânica ocorrido no período de 1996 e 1998, o qual havia sido liminar e provisoriamente autorizado por aquela mesma Corte sob o fundamento da precaução (cf. Court of Justice of the European Communities, Case C-241-01, National Farmer´s Union (UK) v Secrétariat général du gouvernement (FR), julgado em 22/10/02) – uma decisão, aliás, que vem a calhar quando nos deparamos com a repercussão internacional da chamada “operação carne fraca” – efetuada pela polícia federal contra vários frigoríficos no Brasil.
É preciso evitar o “populismo ambiental”
Dias Toffoli rebateu com firmeza a tese da “inversão do ônus probatório” tida como implícita na aplicação do Princípio da Precaução. “Com o devido respeito, não se mostra correta a afirmativa de que esse princípio deva ser aplicado quando não comprovado o afastamento total dos riscos efetivos ou potenciais. Isso porque penso que, dificilmente, existirá um produto ou serviço que possa estar livre de qualquer margem de risco à saúde ou, conforme o caso, ao meio ambiente. Para a ciência, inclusive, não existe – em um contexto amplo – um nível de risco igual a zero, pois, como já advertido por Gerd Winter, os riscos não podem ser excluídos, na medida em que sempre permanece a probabilidade de um dano menor, ou seja, os riscos sempre existirão mas podem ser minimizados (European Environmental Law – A Comparative Perspective. Aldershot: Dartmouth Publishing Co. 1996, p. 39 a 41).”
Prossegue o Ministro: “Há, inclusive, precedente nesse sentido na Corte de Justiça da Comunidade Europeia, no qual se salientou que as as medidas de precaução não devem ser uma tentativa de se atingir um “risco zero”, nem pode a adoção do princípio da precaução justificar a adoção de decisões arbitrárias (cf. Court of Justice of the European Communities, Case C-241-01, julgado em 22/10/02)”.
Levando em consideração todos os seus elementos constitutivos o STF, seguindo o entendimento de Toffoli, entendeu que “o princípio da precaução é um critério de gestão de risco a ser aplicado sempre que existirem incertezas científicas sobre a possibilidade de um produto, evento ou serviço desequilibrar o meio ambiente ou atingir a saúde dos cidadãos, o que exige que o Estado analise os riscos, avalie os custos das medidas de prevenção e, ao final, execute as ações necessárias, as quais serão decorrentes de decisões universais, não discriminatórias, motivadas, coerentes e proporcionais.” (grifamos)
Princípio da Precaução não é apanágio para covardias
A decisão do STF citou o administrativista e professor carioca Juarez Freitas, que sobre a precaução no direito administrativo, em alentado artigo, invocara o professor norte americano da Universidade de Harvard, Cass Sustein, e suas considerações sobre o papel do medo na redução das prerrogativas da democracia insertos na definição do princípio da precaução – e o nome do trabalho diz tudo: “Laws of Fear” ( in Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 1 a 9).
O alerta do jurista norte americano devia ser escrito na lousa cem vezes, pelos militantes biocentristas e ecologistas radicais infiltrados no direito ambiental brasileiro, pois conforme consta no artigo “Princípio Constitucional da Precaução e o Direito Administrativo Ambiental”*1 de Juarez Freitas:
“urge não dar uma resposta errônea aos medos da sociedade, isto é, não sucumbir ao estilo populista, irresponsável e irracional. Com efeito, o populismo se preocupa, desmedidamente, com riscos triviais e, com frequência inaudita, desconsidera riscos graves (…). Indispensável, assim, atentar para as armadilhas psicológicas que reinam no tema, contagiosamente. A própria precaução, se e quando ruinosamente inflacionada, revela-se fator imobilizante[,] que gera o pecado da omissão, em vez de vencê-lo. Com efeito. Precaução em demasia é não-precaução.”
O texto é muito claro. Precaução não é “dizer não”.
Segundo o artigo citado, “para piorar as coisas, a paralisia irracional desencadeia danos juridicamente injustos e, portanto, indenizáveis”.
Numa frase: “o Estado precisa agir com precaução, na sua versão balanceada, apenas quando tiver motivos idôneos a ensejar uma intervenção antecipatória proporcional, nos limites da tessitura normativa. Se não o fizer, aí sim, será partícipe da geração de dano irreversível ou de difícil reparação. Em outros termos, impende que o Poder Público, inclusive em termos regulatórios, deixe de operar com demasia ou com apática inoperância, no cumprimento dos deveres de precaução”.
Daí porque, conforme o voto do relator no Recurso Extraordinário, o respeito aos elementos acima desenvolvidos e os procedimentos a serem adotados na aplicação do princípios se mostram essenciais, até para justificar a impossibilidade de simples inação pelo medo, pelo receio desmedido.
Ou seja, a aplicação do princípio da precaução envolve combater a inação pelo medo. Não é, portanto, um princípio para medrosos, não é apanágio para covardias.
Ementa do RE 627189
STF, Rel. Min. Dias Toffoli
08/06/2016 Julgado mérito de tema com repercussão geral TRIBUNAL PLENO
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 479 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, para o fim de se julgarem improcedentes ambas as ações civis públicas, sem a fixação de verbas de sucumbência, firmando a seguinte tese: “No atual estágio do conhecimento científico, que indica ser incerta a existência de efeitos nocivos da exposição ocupacional e da população em geral a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, não existem impedimentos, por ora, a que sejam adotados os parâmetros propostos pela Organização Mundial de Saúde, conforme estabelece a Lei nº 11.934/2009”, vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Marco Aurélio e Celso de Mello, que negavam provimento ao recurso. Impedido o Ministro Ricardo Lewandowski (Presidente). Falaram, pela recorrente Eletropaulo Metropolitana – Eletricidade de São Paulo S/A, o Dr. Rodrigo Kaufmann; pelas recorridas Sociedade Amigos do Bairro City Boaçava e Sociedade Amigos dos Altos de Pinheiros, o Dr. Fernando Netto Boiteux; pelo amicus curiae União, a Dra. Grace Maria Fernandes Mendonça, Secretária-Geral de Contencioso da Advocacia-Geral da União, e, pelo amicus curiae Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica – ABRADEE, o Dr. Henry Lummertz. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 08.06.2016.
*1 Juarez de Freitas, “Princípio Constitucional da Precaução e o Direito Administrativo Ambiental” – in Boletim de Direito Administrativo – BDA, Agosto, 2006, p 890. 18
*2 Antonio Fernando Pinheiro Pedro, “Prevenção não se Confunde com Precaução no Direito Ambiental”
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal e Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Vice-Presidente da Associação Paulista de imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.