Presídios e Facções: estamos na anomia?
O termo anomia, oriundo do grego, significa “sem lei”, “sem norma”. Pode ser até a falta mesmo de normas jurídicas para regular a vida em sociedade, mas também pode significar que as normas existem, porém não são mais efetivas para regularem a vida em comum. Seriam as recentes rebeliões nos presídios neste já agourado 2017 um sinal da anomia?
Por João Carlos Pelissari “
“A anomia é uma condição social, que pode fazer brotar vários tipos de comportamento(…)
A anomia, então, não é um estado de espírito, mas um estado da sociedade.”
Ralf Dahrendorf
A questão que trazemos a vocês nesse tema que está estarrecendo o Brasil e o mundo é a questão da anomia e seu impacto na Segurança Pública e o papel da Polícia nesse contexto.
Iremos nos balizar nos ensinos de Ralf Dahrendorf, um cientista político alemão, autor do livro “A lei e a ordem”.
Como dito na chamada acima, a anomia pode ser entendida de duas formas, porém a que nos interessa nesta abordagem é aquela em que uma sociedade, em que um estado abdicam, voluntariamente ou não, de exercitarem o cumprimento da lei e a manutenção ou preservação de uma ordem pública que garanta o mínimo de civilidade no convívio entre as pessoas (e propositalmente não usarei o termo cidadão, vez que não podemos conceber tal status em um ambiente anômico), atitude que leva ao esgarçamento do tecido social e, por fim, do desaparecimento daquilo que nos acostumamos a denominar sociedade.
Entretanto o problema não é a anomia em si, como diz Dahrendorf, pois uma vez instalada, em regra, ela perdura um espaço razoavelmente curto de tempo; pois, para o bem ou para o mal, alguma força que esteja lutando pela soberania desse estado falido irá repor a “sua” ordem e a anomia desaparecerá. O verdadeiro problema é o “processo anômico”, ou seja, todo o caminho que é trilhado para chegarmos ao abismo da anomia; esse sim é extremamente doloroso e pode se arrastar por gerações e deixará atrás de si um rastro de cadáveres (reais ou retóricos) que mina a sociedade lenta e dolorosamente.
Essas duas rebeliões nos presídios de Manaus (AM) e Boa Vista (RR), que deixaram 91 mortos decapitados e esquartejados, não é ainda a anomia, mas talvez a consolidação de um processo anômico que poderá comprometer toda a nação.
No processo anômico, Ralf Dahrendorf enumera e faz digressões a alguns sintomas que o denunciam. O sintoma principal, a quem reputa a verdadeira causa que leva à anomia, é a impunidade! Não só pelo ângulo da não punição dos desvios, como pela relutância crescente das autoridades em exercer a autoridade.
“Mas os homens podem viver a caminho da anomia, que é, na verdade, a condição de algumas sociedades contemporâneas. (…) descobrimos que o caminho para a anomia seria um caminho ao longo do qual as sanções iriam sendo progressivamente enfraquecidas. Os responsáveis deixam de aplicar as sanções; indivíduos são isentos delas. A impunidade torna-se quotidiana.”(pág. 34)
Eis a grande questão! Nós seres humanos, agimos constantemente como que querendo a anomia até ela se instalar.
Uma vez instalada clamaremos aos céus por redenção.
O outro sintoma que ele elege são as denominadas por ele áreas de exclusão. Áreas de exclusão seriam indivíduos ou grupos (até áreas físicas mesmo como os presídios brasileiros) que seriam isentos da aplicação das normas.
Qualquer exercício que você faça para enquadrar isso na realidade brasileira é totalmente válido. Há pelo menos 30 anos nossos governantes e políticos (a maioria adotando uma cartilha de esquerda) vêm, sistematicamente, criando as áreas de exclusão em nossa sociedade. Os bandidos são vítimas e portanto a lei penal é para oprimir os pobres; MSTs e MTSTs da vida são inimputáveis e por aí vai.
Senão vejamos!
Ele indica quatro características que envolvem as áreas de exclusão.
1) áreas de exclusão para aplicação de sanções: certos crimes, certas violações passam a não ser mais criminalizados. Os furtos, por exemplo. A retórica dos pequenos crimes, que agora vem englobando cada vez mais crimes, como o novo “pequeno tráfico de drogas”. Vai-se descriminalizando condutas (não por uma evolução natural da sociedade, como no caso do adultério) para tornar áreas e indivíduos imunes à lei e, assim, instalar o caos na sociedade.
2) juventude: lembram-se dos arroubos que se verificam quando se busca reduzir a maioridade penal? Pois é isso aí! Aqui um determinado segmento da sociedade é imune à lei e, consequentemente, tudo pode. Até matar! Ou não é o que vemos diuturnamente em nossa sociedade? Cada vez mais os adolescentes patrocinam assassinatos nas periferias das cidades brasileiras.
3) lugares: eis aqui os presídios, as ditas “comunidades” e todo o lugar onde o poder público deliberadamente não intervém! Nossa Presidente do STF foi vistoriar o Presídio em Manaus e deu com a cara na porta! Os presos “não autorizaram” uma Chefe de Poder da nossa republiqueta entrar e ficou por isso mesmo! Há muito há áreas de exclusão físicas no país e vêm crescendo a cada ciclo governamental.
4) volume de transgressões: este é resultado dos três anteriores. Quando o volume das transgressões cresce demais, torna-se quase impossível de controlar. No Brasil apenas 8% de todos os crimes são solucionados. Quando falamos de homicídios, isso vai para só 2%. No Brasil o crime compensa!
Eis um quadro praticamente fiel de nossa realidade!
E lembrando que Dahrendorf escreveu este livro em 1985.
Pois bem, e qual seria o papel da Polícia nesse contexto? Lembrem-se que ela é também um ingrediente do fator impunidade, na exata medida em que pode buscar, voluntariamente ou não (neste caso as autoridades superiores constrangem à não aplicação da norma), não exercerem sua autoridade.
Seria exatamente este: evitar que se instale a impunidade e as áreas de exclusão.
A questão é a da efetividade policial.
Beccaria já afirmava que “mais importante que o rigor da pena, é a certeza da punição”. Ora, se a Polícia for incentivada, pelos governantes e pela sociedade, a praticar sua autoridade e exercer seu poder de aplicação de sanções, mesmo e principalmente nos chamados “Crimes de Menor Potencial Ofensivo”, ela iria paulatina e progressivamente afastando os sintomas da anomia e, com sorte e competência, em 10 ou 20 anos teríamos outra sociedade. E isto, garanto, com um investimento pequeno, em se tratando de Estado Brasileiro.
Basta vontade e vergonha na cara…
A Polícia detém o monopólio do conhecimento de “fazer o policiamento”. Deixe-a trabalhar e apoie suas ações.
Como já afirmamos em nossos posts anteriores, a Polícia é compromissada com a sociedade e a democracia. Confie!
Artigo originalmente publicado em http://coronelpmpelissari.blogspot.com.br/2017/01/presidios-e-faccoes-estamos-na-anomia.html?m=1
*João Carlos Pelissari é Coronel da Reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo e Doutor em Segurança Pública. Formado em Direito, é Membro Consultivo da Comissão de Direito Militar da OAB/SP.