Política Nacional de Fauna: uma análise dos argumentos contrários

aprisionar-animais1-650x484

 

Por Marc Dourojeanni*

Há semanas li o Projeto de Lei nº 6.268/2016, que propõe uma Política Nacional de Fauna para o Brasil. Fiquei muito bem impressionado pela proposta que, efetivamente, cobre um vazio da legislação ambiental brasileira e que achei bem feita, tecnicamente balanceada, e realista, portanto, aplicável. Trata-se de um projeto de lei que merece atenção e uma respeitosa discussão para aprimorá-lo.

Por isso fiquei chocado com a leitura da Nota de Repúdio ao projeto de Lei nº 6.268/2016 que foi assinada por um numero importante de instituições e de personalidades vinculadas a proteção dos direitos animais e ao meio ambiente. É tão grande a proporção e o tamanho das inexatidões e erros contidos na tal nota, que a minha primeira conclusão foi que os que a escreveram têm pouca noção sobre o que é manejo da fauna, e que a maioria dos assinantes não leu o projeto de lei. Com o propósito de quiçá ensejar um debate ponderado que realmente contribua a melhorar o texto proposto, escrevi o que segue, respondendo o que há sob meu ponto de vista de incorreto nas afirmações feitas na Nota de Repúdio.

Antes de entrar na matéria quero destacar que não sou nem fui caçador e que já acumulei 50 anos dedicados a conservar a natureza no meu país, o Peru, e em vários outros países, contribuindo para estabelecer e cuidar de áreas protegidas, resgatar espécies da fauna em extinção e a fazer e implantar legislação em favor da natureza e dos povos indígenas e locais. Dentre outras responsabilidades, por duas décadas, fui professor e pesquisador em manejo da fauna silvestre.

Apresento a seguir, destacado em itálico, os trechos da Nota de Repúdio (NdR) que mereceram os comentários (sublinhados são meus) e, ato contínuo, os comentários.

Comentários à Nota de Repúdio

          Nota de Repúdio (NdR): “Na prática, a proposição abre caminho para a liberação da caça de fauna silvestre em escala nacional, sem dúvida comprometendo os esforços que o Brasil vem desempenhando para a conservação da biodiversidade, em sintonia com a legislação nacional e com acordos internacionais como a própria Convenção da Diversidade Biológica das Nações Unidas”.

Comentário: Em primeiro, é suficiente ler o Projeto de Lei para ver que não abre caminho à liberação da caça. Apenas a enquadra numa política e a reglamenta. E mais, a proposta não trata apenas da caça, mas do manejo da fauna selvagem ou silvestre.

Em segundo lugar, não há relação negativa entre a proposta, os esforços do Brasil para conservar a sua biodiversidade e, em especial, seus compromissos internacionais. Caso contrário os outros quase 180 países signatários da Convenção da Diversidade Biológica e de outros acordos que protegem a fauna e a flora os estariam contrariando, pois quase toda a caça, inclusive a tão vilipendiada caça esportiva, não tão somente é permitida, mas promovida pelos governos.

A caça e a caça esportiva ocorrem, conforme a lei, tanto nos países mais desenvolvidos e cuidadosos com o ambiente como os nórdicos (Noruega, Suécia, Finlândia, Dinamarca) como em outros onde se pode discutir a seriedade ambiental (Rússia, China). Também na maior parte dos países africanos, especialmente na África do Sul, Zimbabwe, Zâmbia, Tanzânia, Moçambique, etc. A caça esportiva ocorre obviamente nos EUA, Canadá e México. Também na Austrália e Nova Zelândia, e até no Japão. Caça-se na França, Alemanha, Espanha, Portugal, Itália, Reino Unido, etc., etc. Na Ásia, só a superpovoada Índia proibiu a caça. Esses países são signatários da Convenção de Biodiversidade e de outros tratados internacionais protegendo a natureza, e nenhum deles achou que devia proibir a caça, nem sequer a caça esportiva.

          Nota de Repúdio (NdR):“O manejo da fauna é uma coisa e a caça é outra. A caça, aplicada como parte do manejo, é apenas uma das técnicas de manejo dentre centenas”

Comentário:Neste ponto, é importante enfatizar, o Brasil é um dos pouquíssimos países do mundo que, na prática, inviabiliza a caça formal e que, pelo contrário, dá plena liberdade à caça de subsistência e, que, assim mesmo, não consegue controlar as mais diversas modalidades ilegais de caça comercial. Na América Latina, o único país que proibiu formalmente toda forma de caça é a pequena Costa Rica. A caça esportiva é permitida, e dá muito lucro, na Argentina e é legal no Chile, Uruguai, Peru, Paraguai, Bolívia e outros. A exceção brasileira só é acompanhada por Venezuela e Equador e, em certa medida, pela Colômbia.

Então, por que no caso do Brasil, ao contrário do resto do mundo, uma lei que determina uma politica nacional e que regulariza melhor a caça em geral, comprometeria os seus esforços por conservar a sua biodiversidade, ou não estaria em sintonia com os acordos internacionais?

          NdR: No Brasil, um dos países mais ricos em formas de vida no planeta, são registrados a cada ano inúmeros casos de caça ilegal de animais silvestres, inclusive dentro de Unidades de Conservação de Proteção Integral. Lembremos o caso da pecuarista Beatriz Rondon, proprietária da Fazenda Santa Sofia, considerada uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) e que faz parte da Associação de Proprietários de Reservas Particulares de Mato Grosso do Sul (REPAMS). Nessa propriedade ocorriam safáris de caça às onças-pintadas. Esse lamentável fato, por si só, já coloca em risco o equilíbrio de nossos ecossistemas, um patrimônio de todos os brasileiros e recurso estratégico para um futuro mais sustentável e seguro.

Comentário: É verdade que a caça de animais silvestres alcança um volume anual enorme no Brasil. A maior parte da matança de animais silvestres é praticada por índios, caboclos, quilombolas, camponeses, madeireiros e garimpeiros e é oficialmente amparada como “caça de subsistência” e, grande parte do produto dessa modalidade de caça é comercializada localmente. Outra parte da caça praticada por esses mesmos segmentos da sociedade é de tipo comercial e abertamente ilegal, especialmente para venda de animais silvestres vivos, alimentando o tráfico internacional. A fração da caça denominada esportiva é ilegal e proporcionalmente mínima, devido às restrições regimentárias e a oposição muito ativa de alguns segmentos da sociedade. Recentemente, certa forma de caça esportiva está associada ou dissimulada através da caça de fim “sanitário”, como no caso do javali.

O caso da caçada esportiva de onças no Pantanal, apesar de ser lamentável pelo fato de ter violado regras vigentes, mostra um caminho certo para melhorar a conservação de áreas naturais como as que se preservam nas reservas particulares (RPPNs) e, em geral, nas áreas de preservação permanente (APPs), aumentando sua rentabilidade econômica direta. O manejo das populações de fauna silvestre permite, precisamente, dispor de exemplares para caça esportiva e para ecoturismo, na mesma área, sem prejudicar a população nem a pirâmide alimentar do ecossistema. Embora a população de onças ao nível nacional seja reduzida, em partes do Pantanal e em outros locais está artificialmente aumentada pela disponibilidade de gado para a sua alimentação. Os pecuaristas, proibidos de caçar, envenenam anualmente números elevados de onças-pintadas e pardas. Todos que demonizam o caso dessa fazenda simplesmente desconsideram o fato dela ser responsável por determinar a conservação de centenas de milhares de hectares com recursos próprios.

A conclusão no texto comentado de que a caça de onças, no contexto descrito, “já coloca em risco o equilíbrio de nossos ecossistemas” é simplesmente ridícula. Primeiro, porque isso aconteceu apenas num local do extenso Pantanal … o que não implica risco para os ecossistemas e; logo, porque os proprietários de fazendas ou RPPNs com animais de interesse cinegético, bem seja para o turismo ou para a caça esportiva, são os mais interessados em não eliminá-los, já que dão lucro. Nisso, o manejo de populações de animais selvagens não é tão diferente do manejo do gado por qualquer fazendeiro.

          NdR: A caça de animais silvestres é proibida no país há 50 anos, medida amparada em leis como as de Proteção à Fauna (Lei 5.197/1967) e de Crimes Ambientais (Lei9605/1998). No Rio Grande do Sul, amparada por regulamentação estadual (Lei nº 10.056, de 10/06/1994) a atividade ocorreu até o ano de 2005, quando foi interrompida pela primeira de uma série de decisões judiciais, até sua definitiva proibição pelo STF em 2008. Embora as temporadas de caça no Rio Grande do Sul fossem precedidas de estudos com o objetivo de comprovar sua sustentabilidade e anualmente apresentados em Audiência Pública, estes esforços foram considerados insuficientes pela Justiça brasileira.

Comentário: Não é completamente verdade que a caça “de animais silvestres” esteja proibida no Brasil há 50 anos. Durante esse período, o exercício do manejo de fauna e da caça, que é uma das suas técnicas, é previsto e o poder público é em grande medida omisso ao não implantá-lo devidamente. Ademais, a sua prática para alimentação é permitida pela mesma lei, e extensamente praticada, como já explicado. Também está permitida e se pratica legalmente a caça com fins sanitários, caso do javali. A caça esportiva não está realmente proibida. A verdade é que está drasticamente obstaculizada mediante dispositivos legais inferiores ou mediante medidas administrativas federais e estaduais. A única modalidade de caça que está terminantemente proibida é a caça comercial.

Assim como a quase totalidade das condutas previstas como crime ambiental na respectiva legislação, a caça não se refere a práticas proibidas, mas sim a práticas que são proibidas quando em desacordo com autorização concedida ou sem esta autorização.

          NdR: Na prática, a caça de animais silvestres nunca cessou no Brasil e é considerada um dos principais fatores da redução de populações e da extinção de espécies ameaçadas, pela extensão do país e inviabilidade de uma fiscalização adequada. Desde 2013, está liberada a “caça controlada” do chamado Javali, espécie invasora que tem se alastrado e provocado sérios impactos ambientais e econômicos, já com registros em 13 estados.

Comentário: A caça é, com efeito, uma causa importante da redução das populações animais silvestres, principalmente quando contraria períodos de defeso e orientações técnicas de manejo, exatamente da forma que acontece pelo fato de não ser devidamente regulamentada. Mas, a caça é muito menos importante do que a destruição de habitats para expansão da agricultura e a pecuária.

De outra parte, a responsabilidade principal pela diminuição das populações da fauna e da sua eventual extinção é, precisamente, da caça de subsistência, que representa possivelmente 90% das mortes por caça e captura de animais silvestres no Brasil. A caça comercial, que é ilegal, é uma causa especialmente incidente na diminuição das populações de animais valiosos em perigo de extinção e, por isso, é a mais perigosa. Não existe evidência nenhuma que a caça esportiva (legal ou ilegal) seja causa de extinções no Brasil, nem sequer no caso de animais ameaçados.

          NdR: Pois, o Projeto de Lei 6.268/2016 anula a Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197/1967) e retira da Lei de Crimes Ambientais (Lei n.º 9.605/1998) o poder de ampliar penas de detenção e multas por matar, perseguir, caçar, apanhar ou utilizar animais sem licença, se isso acontecer durante expedições de caça. Trata-se de mais um possível enorme retrocesso para as normativas ambientais nacionais.

Comentário: O projeto de Lei 6.268/2016, embora aperfeiçoável, não parece implicar nenhum retrocesso na legislação que protege a fauna. Bem ao contrário, estipula uma série de medidas de manejo que, hoje, não existem ou não estão bem definidas.

          NdR: O necessário desenvolvimento e implantação de um Plano Nacional de Prevenção, Controle e Monitoramento do Javali Asselvajado no Brasil já denota preocupação, pois serão vultuosas as dificuldades de controle e de monitoramento sobre a possível prática de caça em um país com as dimensões do Brasil.Sem contar em práticas nocivas dos próprios caçadores, como soltura do Javali em locais remotos como oferta de caça, abate de espécies silvestres, crueldade no abate dos javalis ou no uso de cães de caça, armadilhas de laço e até o uso de armamento não autorizado.

Comentário: O problema do javali, que é uma praga introduzida, já é tão custoso para o agro e tão arriscado para o futuro da biodiversidade brasileira que a caça até o extermínio -no Brasil – das suas populações selvagens deve dispor das máximas facilidades. É evidente que o aniquilamento dessas pragas deve ser feito respeitando as normas que evitam crueldade. Não obstante, no caso do javali, limitar o uso de cães de caça implica um obstáculo quase insolúvel.

          NdR: Pois, na carona dessa mobilização acima, essa com debate público e embasamento técnico, o Projeto de Lei nº 6.268/2016, proposto por iminente membro da Bancada Ruralista, pretende liberar a caça de animais silvestres sob justificativas frágeis como necessidade de “manejo” e de “controle populacional”, afirmando que é preciso conter populações de determinadas espécies, taxadas de invasoras e perigosas aos ecossistemas. Nesse sentido, cabe pontuar os conceitos corretos de acordo com a literatura técnico-científica:

Comentário: Chamar de “justificativas frágeis” a necessidade de manejo da fauna e de controle populacional é negar a essência da ciência do manejo da fauna e os princípios mais elementares da ecologia e, em especial, da dinâmica de populações. O tal comentário revela ignorância do que realmente é o manejo da fauna (veja meus textos sobre o assunto aqui, aqui, aqui e aqui), ou seja, uma ciência que se estuda em faculdades universitárias e na qual se formam professionais especializados nesse campo na maioria dos países mais desenvolvidos. O manejo da fauna é a ferramenta que permite manter um balanço entre as necessidades da fauna silvestre, de seu habitat e as necessidades da população humana, utilizando os melhores conhecimentos científicos disponíveis. Outra definição, dentre as muitas que existem, é o conjunto de técnicas que permite o aproveitamento da fauna não domesticada ou de seus produtos, em forma sustentável. Na verdade, no que concerne aos seus princípios, o manejo da fauna selvagem difere muito pouco do manejo da fauna domesticada, que é mais conhecida como pecuária ou zootecnia.

          NdR: Caça – É a prática de perseguir animais, selvagens ou assilvestrados, para fins alimentares, para entretenimento, defesa de bens, populações e atividades agrícolas ou com fins comerciais. O termo em inglês, hunting refere-se à caça praticada enquanto atividade autorizada em lei, e o termo poaching à caça furtiva (constituindo uma atividade ilegal). Embora não exista uma definição estrita, o termo “caça” aplica-se na perseguição de mamíferos, aves e répteis. Feita geralmente com métodos desumanos, onde o animal sofre muito antes de ser abatido.

Comentário: O agregado “Feita geralmente com métodos desumanos, onde o animal sofre muito antes de ser abatido”, além de ser um tanto ridículo e sem relação com o resto do texto, é falso desde o ponto de vista teórico, pois o manejo da fauna oferece opções para evitar expressamente que isso ocorra. Também é falso na prática, já que fazer sofrer inutilmente o animal não traz beneficio algum para o caçador.

          NdR: Manejo através da caça – O manejo através da caça é a erradicação de animais de uma ou mais espécies, geralmente exóticos ou com excesso populacional, para eliminar animais considerados nocivos ou perigosos, que possam causar prejuízos econômicos ou à flora e fauna do país, ou para se evitar a propagação de doenças. Método praticado com regras e controles por parte de equipes técnicas designadas pelo Governo e órgãos ambientais responsáveis.

Comentário: A definição de “manejo através da caça” apresentada é absurda longe de um propósito construtivo para o debate da lei. Em primeiro, não existe “manejo através da caça”. O manejo da fauna é uma coisa e a caça é outra. A caça, aplicada como parte do manejo, é apenas uma das técnicas de manejo dentre centenas, que incluem modificações no habitat (variar a composição vegetal, oferecer fontes de água, providenciar sal ou outros nutrientes, providenciar nichos para nidificação, etc.), alterações nas populações de outros animais que interagem com a espécie objeto do manejo (por exemplo, redução da população de depredadores ou competidores), suplementos alimentares diretos, controle de parasitas enfermidades, reintrodução de espécies ou de espécimes, medidas educativas na população local, etc., etc. Deve se levar em conta, que o manejo da fauna use técnicas para repovoar áreas nas quais se extinguiu a fauna nativa e reconstituir populações de animais em risco de extinção. O manejo da fauna não é só para enquadrar as diversas formas de caça, como foi interpretado pelos autores da Nota de Repúdio.

Além disso, o manejo da fauna e a caça, seja qual for esta última, quase nunca tem por finalidade a “erradicação de animais de uma ou mais espécies”. Excetuando o caso de pragas, como o javali, nenhum caçador, nem o mais bruto e malvado, pretende ficar sem animais para caçar no futuro. Nem isso seria o caso do javali, que existe como espécie silvestre nativa em seus biomas de origem. O que acontece é que, precisamente por falta de manejo, a extinção pode ocorrer.

Já que o problema principal dos autores do manifesto parece ser a caça esportiva, vale lembrar que uma das aplicações da caça esportiva como técnica de manejo de fauna é garantir que o usufruto de determinados indivíduos de algumas populações animais seja uma alternativa econômica para habitantes de grandes áreas naturais ou rurais, sejam estas terras indígenas ou propriedades privadas. Falando em termos simples se, por exemplo, um grande fazendeiro dono de milhares de hectares de cerrado nativo quer fazer manejo de perdizes em sua grande propriedade (o que geraria renda e manteria seu cerrado sem desmatar, protegendo não só o habitat nativo, mais todas as outras espécies de fauna de diferentes ali existentes) não poderá fazê-lo baseado no contexto legal vigente. Mas, se este mesmo proprietário quiser desmatar 80% desse cerrado, destruindo todo o habitat com todos os seres vivos ali existentes, poderá proceder sem problema. Essa é classe de absurdos que uma nova politica de manejo da fauna poderia evitar.

          NdR: Fatos são que a caça não é necessária para controle populacional de espécies silvestres brasileiras e que se compõe, na verdade, de simples deleite para caçadores – verdadeira expressão do prazer pelo abate ou para tráfico de material biológico. A condução de tema de tamanha relevância para a biodiversidade nacional por expoentes da Bancada Ruralista, já responsável por inúmeros retrocessos em nosso arcabouço legal socioambiental, sem dúvida não permitirá um debate amplo e democrático e com saldo positivo à conservação.

Comentário: A afirmação “a caça não é necessária para controle populacional de espécies silvestres brasileiras” é errada. A caça, como parte do manejo é, sem dúvida, na maior parte dos casos, indispensável ou a melhor opção técnica, social e econômica para controlar populações que excedem os números que o ecossistema suporta ou, como o diz a definição de manejo, para atender as necessidades da população humana. Como poderiam se alimentar índios, caboclos, quilombolas e outros que praticam caca de subsistência sem caçar? Mas, a caça também pode servir ao propósito de garantir benefícios diretos para os que conservam habitats naturais, utilizando-se a fauna cinegética como recurso para tanto. Por isso existem reservas de fauna e caça em muitos países. Apenas a Selous Game Reserve (Tanzânia) possui uma área conservada do tamanho de metade do Estado do Paraná. Lá, como na reserva de caça El Angolo (Peru) e em milhares de outras localidades, o objetivo do manejo é o uso sustentado dos recursos de fauna. Aqui no Brasil existe a Reserva de Mamirauá como exemplo de uso conservacionista de recursos de fauna para garantir à conservação de grandes áreas e prover benefícios à população residente.

A segunda afirmação “para simples deleite para caçadores – verdadeira expressão do prazer pelo abate” é malévola. Como dito, a maior parte dos animais silvestres que são mortos a cada ano no Brasil servem para alimentar ou para dar (ilegalmente) algum dinheiro adicional ao segmento mais pobre da população rural brasileira. Acaso os índios, caboclos e outros matam por “simples deleite” o como “verdadeira expressão de prazer”? Supõe-se que caçam por necessidade. O animal morto ou preso em armadilhas por índios e caboclos não sofre tanto quanto qualquer outro animal silvestre abatido? Então, como fica a argumentação?

Um dos defeitos do projeto analisado é, precisamente, não se aprofundar suficientemente no tema das condições para o exercício da caça de subsistência, que é a principal no Brasil. Discussões recentes reportadas no mesmo ((o))eco falam desses problemas precisamente no caso das áreas protegidas de uso sustentável e da Reserva de Mamirauá acima mencionada.

Tem mais, no mundo todo, seja escrita ou costume, o caçador, especialmente o esportivo, não deve desperdiçar os restos de suas presas. Em geral, os consome no meio familiar ou de suas amizades.

          NdR: Se o PL for aprovado, receberá aplausos vigorosos da indústria brasileira de armas e munições e de suas congêneres, que ampliarão seu “mercado de morte”. Este projeto não é só contra o meio ambiente. É contra a paz e será incentivo direto para liberação do uso de armas no país, além de contribuir para a cultura da crueldade e violência. As crianças que aprendem a amar os animais serão estimuladas a matá-los, como acontece nos EUA. Boa parte das mortes que lá acontecem, incluindo de crianças, são resultantes da fácil aquisição de armas para caça.

Comentário: É possível que a caça esportiva aumente o número de armas em circulação específicas para a prática. Armas para a caça de subsistência estão disponíveis sem problema em toda a Amazônia. Em compensação, a economia local e regional melhorará onde seja facilitada a caca esportiva bem manejada e controlada, como propõe o projeto de lei.

A afirmação de que os meninos norte-americanos são estimulados a matar animais silvestres porque os pais são caçadores não está sustentada por nenhuma prova. É pura especulação. Bem ao contrario, tudo indica que os jovens daquele país aprendem desde cedo o valor da vida dos animais e a necessidade de respeitar as leis de caça.

Em conclusão

Um projeto de lei que tenta estabelecer uma política nacional de fauna baseada no manejo sustentável desse recurso não pode ser tratado como uma “lei de caça” apenas porque o projeto não foi lido ou não foi bem interpretado. Nem porque um grupo tenha, na realidade, como único objetivo se opor a caça esportiva, que é tão só um dos aspectos que este projeto pretende legislar a respeito.

O projeto de lei que se discute não é perfeito e, sem dúvida, deve ser discutido e pode ser melhorado. Mas, a discussão deve ser enquadrada em fatos e na verdade e não apenas em opiniões sem base, em sentimentos e, menos ainda, em preconceitos.

Finalmente, é fundamental levar em conta que estar a favor de debater um projeto de lei não implica estar a favor ou contra o objeto do projeto, neste caso o manejo da fauna o que, como visto, alguns confundem com a caça. Ou seja, tanto aqueles a favor da caça como os que estão em contra devem participar seriamente da sua discussão.

 

marc-dourojeanni*Marc Dourojeanni – Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interamericano de Desenvolvimento e fundador da ProNaturaleza.

 

 

 

Fonte: http://www.oeco.org.br/colunas/marc-dourojeanni/politica-nacional-de-fauna-uma-analise-dos-argumentos-contrarios/

 

 


Desenvolvido por Jotac