Pichação nem sempre é crime de menor potencial ofensivo
Pichação nem sempre é crime de menor potencial ofensivo
Por Marcos Paulo de Souza Miranda*
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o meio ambiente ecologicamente equilibrado foi elevado ao patamar de direito fundamental de terceira geração, por força da redação do artigo 225, o qual dispõe:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Para atingir o ideal da qualidade de vida, o ser humano necessita de uma configuração espacial que propicie o bem-estar físico e psíquico.
Não por outra razão, o constituinte incumbiu ao legislador infraconstitucional um destacado dever, incomum em relação a outros bens jurídicos. No artigo 23, VI, da Carta Magna ficou assentado ser competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. Não bastasse, no parágrafo 3° do artigo 225, restou assentada a obrigação de tipificar criminalmente, inclusive com a possível incriminação de pessoas jurídicas, condutas lesivas ao meio ambiente.
Portanto, debruçou-se o legislador constitucional com especial atenção sobre os bens ambientais, determinando que as atividades degradadoras fossem devidamente previstas em tipos penais e administrativos, além da responsabilidade civil já consagrada pela Lei Federal 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente).
Essa lei, conquanto verse sobre a esfera civil de responsabilização, é por demais significativa do ponto de vista conceitual e acaba se refletindo também na definição do bem jurídico meio ambiente que acabou inspirando a criação da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes e das Infrações Administrativas Ambientais).
O meio ambiente é definido na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (artigo 3°, I). Poluição, por sua vez, é “a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente” (artigo 3°, inciso III, “d”, grifamos).
O renomado doutrinador José Afonso da Silva deixa muito claro que a paisagem urbana “é a roupagem com que as cidades se apresentam a seus habitantes e visitantes”. Na sua opinião, “a boa aparência das cidades surte efeitos psicológicos importantes sobre a população, equilibrando, pela visão agradável e sugestiva de conjuntos e elementos harmoniosos, a carga neurótica que a vida citadina despeja sobre as pessoas que nela hão de viver, conviver e sobreviver”[1].
Dessa forma, a qualidade ambiental está associada às condições estéticas do meio ambiente, no próprio conceito de poluição.
A pichação encerra uma das formas mais corriqueiras, porém não menos danosa, de lesão ao meio ambiente decorrente da poluição visual.
Não é de hoje que as cidades brasileiras enfrentam essa prática que, além de sujar, enfear, conspurcar, macular a paisagem urbana, por vezes deteriora a essência de bens culturais, especialmente protegidos ou não, e também danificam edificações particulares que obrigam seus proprietários a elevados dispêndios para recuperação[2].
Em maio de 1992, muito antes da entrada em vigor da aguardada lei de crimes ambientais, Rodolfo Camargo Mancuso já escrevia sobre esse assunto, introduzindo sua reflexão com palavras bastante fortes: “Dentre os eventos e fenômenos aterradores e desalentadores que a sociedade brasileira vem sendo constrangida a assistir (violências de todo o tipo, insegurança geral, desmandos administrativos etc.), vem merecendo destaque a atividade dos chamados ‘pichadores'”[3].
Em artigo publicado em 2017, José de Brito Filomeno qualifica a pichação como verdadeiro “flagelo urbano”, porque as pichações, segundo ele, “infestam todo o nosso campo visual: muros e residências, prédios públicos e particulares, monumentos, passarelas, cemitérios e viadutos — e nada, absolutamente nada escapa à sanha desses vândalos”[4].
Em dias recentes, as pichações e danos provocados no prédio em que reside a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármem Lúcia, bem como na sede da Procuradoria-Geral de Justiça de Minas Gerais, em Belo Horizonte, e no complexo cultural do Pátio do Colégio da Companhia de Jesus, em São Paulo, ganharam as luzes da imprensa nacional, fazendo-se necessárias reflexões sobre a exata dimensão e enquadramento de atos de pichação e outros a eles associados, tais como o dano qualificado ao patrimônio (artigo 163, I a III), a incitação ao crime (artigo 286, CPB), a apologia de fato e de autor de ato criminoso (artigo 287, CPB) e a associação criminosa (artigo 288, CPB), além do clássico tipo penal do artigo 65 da Lei 9.605/98, que criminaliza a pichação, mas está inserido no conceito de crime de menor potencial ofensivo.
Não raras vezes, seja por desconhecimento ou falta de interesse das autoridades públicas, condutas que encontrariam adequação típica em todas as previsões dos artigos acima referidos e sujeitariam os autores a uma pena máxima abstrata de até oito anos de prisão (por exemplo, grupos que se organizam para pichar e depredar bens do patrimônio público e privado, com chamada e convocação por redes sociais e posterior postagens e divulgação de imagens e vídeos enaltecendo os autores e seus delitos, bem como as consequências danosas à paisagem urbana) são singelamente tratadas como se abarcassem o simples tipo penal do artigo 65 da Lei de Crimes Ambientais, cuja pena máxima é de 1 ano de detenção, sujeitando o autor do fato a um simples Termo Circunstanciado de Ocorrência, sem possibilidade de prisão em flagrante ou sequer fixação de fiança (artigo 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95).
Temos defendido, há tempos, que atos associados à pichação também podem atentar contra a paz pública e encontrar adequação típica nos artigos 286, 287 e 288 do CPB, gerando possibilidade de prisão em flagrante ou mesmo, se preenchidos os necessários requisitos legais, a decretação de prisão temporária ou preventiva.
A respeito do resultado decorrente do combate encetado pelo Ministério Público Estadual à atuação de associações criminosas de pichadores que atuavam na capital mineira, causando milhões de reais de prejuízos ao patrimônio público e privado, podemos citar os seguintes precedentes jurisprudenciais:
HABEAS CORPUS – CRIMES CONTRA O ORDENAMENTO URBANO E O PATRIMÔNIO CULTURAL – DANO QUALIFICADO – INCITAÇÃO E APOLOGIA AO CRIME – LIBERDADE PROVISÓRIA – NÃO CABIMENTO – DECISÃO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA – CIRCUNSTÂNCIAS DO DELITO – PERICULOSIDADE DO AGENTE – GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA – CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS – IRRELEVÂNCIA. – É de se considerar suficientemente fundamentada a decisão que, invocando elementos concretos dos autos, considera que a custódia cautelar do paciente é necessária ao resguardo da ordem pública. As condições pessoais do paciente, se favoráveis, não lhe garantem o direito à liberdade provisória, devendo ser analisada casuisticamente a necessidade de manutenção da prisão cautelar. (TJMG – Habeas Corpus Criminal 1.0000.15.061508-6/000, Relator(a): Des.(a) Júlio Cezar Guttierrez , 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 09/09/2015, publicação da súmula em 15/09/2015)
HABEAS CORPUS – ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E PICHAÇÃO DE PATRIMÔNIO TOMBADO – NEGATIVA DE AUTORIA – IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA – REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA – IMPOSSIBILIDADE – DECISÃO FUNDAMENTADA – SEGREGAÇÃO CAUTELAR NECESSÁRIA PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA – GRAVIDADE DO DELITO – MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO – INSUFICIÊNCIA. 1. A tese de negativa de autoria, por demandar dilação probatória, não se mostra compatível com a via estreita do habeas corpus, devendo ser analisada na ação penal. 2. Se a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão se apresenta insuficiente e inadequada para a garantia da ordem pública, encontrando-se ainda a decisão que determina ou mantém a segregação cautelar devidamente fundamentada, a manutenção da prisão preventiva é medida que se impõe. (TJMG – Habeas Corpus Criminal 1.0000.16.036561-5/000, Relator(a): Des.(a) Octavio Augusto De Nigris Boccalini , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 23/08/2016, publicação da súmula em 06/09/2016)
Outra questão que merece reflexão diz respeito à possibilidade de configuração de concurso dos crimes previstos nos artigos 163, III do CPB e 65 da Lei de Crimes Ambientais.
Na boa companhia dos eminentes doutrinadores Alex Fernandes Santiago e Ana Maria Moreira Marchesan[5], temos defendido que o pichador que expressa sua agressividade contra um imóvel de propriedade pública ou privada, mesmo que não dotado de valor cultural, atinge a um só tempo a estética urbana, a paisagem da cidade e o patrimônio público ou privado, conforme a dominialidade do bem, razão pela qual o ato de pichar tem uma natureza bifacetada, lesiva a dois bens jurídicos distintos: propriedade e higidez da paisagem urbana.
Essa afirmação do caráter bifronte da conduta se deve aos diferentes bens jurídicos protegidos e sobre o tema já se manifestou o TJ-MG:
Ademais, os reflexos negativos deste conduta são percebidos tanto pelo ponto de vista ambiental, como pelo ponto de vista patrimonial. Contudo, o que mais choca não é somente o desrespeito pelo patrimônio alheio ou a poluição visual, mas também que tais condutas, longe de divulgarem mensagens de protesto (fator que antes era tido como inerente a essas ações), as pichações atuais mais se assemelham a atos de vandalismo gratuito contra o ordenamento urbano das cidades, ou então danos egoísticos à propriedade alheia. Em regra, não poderíamos sequer admitir que a conduta reflita o direito à liberdade de expressão de um indivíduo, já que a poluição visual decorrente das diversas inscrições, símbolos e desenhos, na grande maioria das vezes, sequer é decifrada pela população, que não vislumbra qualquer fundamento ou motivo para a maioria destas manifestações. A conduta de pichação é altamente reprovável. O legislador, por infelicidade, não deu a devida importância a esta modalidade criminosa, cominando a ela sanção ridícula que, data venia, não atende ao caráter educativo-repressivo que a reprimenda deve ter. (TJMG – APELAÇÃO CRIMINAL Nº 1.0024.11.031213-9/001 – COMARCA DE BELO HORIZONTE – Rel. Des. Corrêa Camargo. J. 10/03/2015).
Em razão do exposto, a matéria em debate não se soluciona no âmbito do conflito aparente de normas, tendo em vista a inexistência de relação de especialidade entre os tipos penais definidos nos dois diplomas antes citados, os quais possuem objetividade jurídica diversa (o primeiro voltado para a defesa da propriedade, e o segundo, para o direito difuso de se viver em uma cidade com paisagem hígida).
Portanto, resta evidente que estamos diante de um caso típico de concurso formal heterogêneo de crimes, onde o autor do fato, com uma só ação, infringe duas leis penais (Código Penal e Lei dos Crimes Ambientais), praticando todos os elementos de ambas as figuras típicas.
Sobre a ocorrência de concurso formal de crimes entre delito patrimonial e delito ambiental decorrentes de uma única ação, temos, a propósito, decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, que entenderam pela sua configuração decorrente de conduta única atingindo bens relevantes com objetos de proteção jurídico-penal diferentes.
Vejamos as ementas dos elucidativos julgados:
Como se trata, na espécie vertente, de concurso formal entre os delitos do art. 2º da Lei n. 8.176/1991 e do art. 55 da Lei n. 9.605/1998, que dispõem sobre bens jurídicos distintos (patrimônio da união e meio ambiente, respectivamente), não há falar em aplicação do princípio da especialidade para fixar a competência do juizado especial federal. 2. Ordem denegada. (STF; HC 111.762; RO; Segunda Turma; Relª Min. Carmen Lúcia; Julg. 13/11/2012; DJE 04/12/2012; Pág. 42).
MEIO AMBIENTE E PATRIMÔNIO PÚBLICO. USURPAÇÃO. Constitui crime contra o meio ambiente e contra o Patrimônio da União (art. 55 da Lei 9.605 e art.2° da Lei n°8.176/1991) a extração e exportação mercantil, sem autorização ou licença da Administração Pública, de recurso mineral (argila), a ensejar a regra do concurso formal entre os delitos. Precedentes citados: Resp 547.047-SP, DJ 3/11/2003, e RHC 16.801-SP, DJ 14/11/2005. (Resp 815.071-BA, Rel Min Gilson Dipp, julgado em 23/05/2010).
Por óbvio que o mesmo raciocínio deve ser aplicado ao caso dos crimes do artigo 65 da Lei 9.605/98 e do artigo 163 do CPB, pois a similaridade com os casos apreciados acima é evidente e, segundo as regras de hermenêutica jurídica, Ubi eadem ratio ibi idem jus (onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito) e Ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio (onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir).
Consequentemente, seja pela técnica jurídica, seja por razões de política criminal (nossas cidades pedem socorro, e os cofres públicos e o patrimônio dos proprietários privados não podem ser aviltados para a reparação de danos ilícitos causados por terceiros), a adesão à tese do concurso formal afigura-se como a mais escorreita no atual momento histórico-evolutivo do Direito Penal brasileiro.
Enfim, é preciso que os operadores do Direito se valham dos instrumentais disponíveis em nosso arcabouço jurídico para o combate eficiente aos crimes de pichação e aos demais a eles associados, sancionando, em sua inteireza, as condutas daqueles que tripudiam sobre o patrimônio alheio e atentam contra a paz da coletividade.
[1] Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo, Malheiros, 1997, p. 273-274.
[2] Sobre o tema: aduzir que as pichações não são fatos relevantes para a sociedade é coadunar com condutas praticadas por indivíduos que se encontram desprovidos de valores culturais, morais e sociais. (TJ-PR – Apelação Criminal 912.713-1 – j. 6 de dezembro de 2012).
[3] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Aspectos jurídicos da chamada “pichação” e sobre a utilização da ação civil pública para tutela do interesse difuso à proteção da estética urbana. Revista dos Tribunais, vol. 679/1992, p. 62 – 75, mai/1992, p. 62.
[4] Pichações: um Moto-Contínuo de Degradação Ambiental e Propostas para seu Equacionamento. Porto Alegre: Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico. Nº 71 – Abr-Maio/2017.
[5] SANTIAGO, Alex Fernandes; MARCHESAN, Ana Maria Moreira; MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. A dupla lesividade do ato de pichar monumentos urbanos e a caracterização do concurso formal dos crimes de pichação e dano. Revista de Direito Ambiental [recurso eletrônico]. São Paulo , n. 81, jan./mar. 2016.
*Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural da Rede Latino-Americana do Ministério Público e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-Brasil).
Fonte: Conjur