“Patentes de seres vivos é um dilema para o Direito que era impensável há 50 anos”
O avanço tecnológico e científico impõe desafios aos sistemas de Justiça de todo o mundo. Impasses de toda ordem se apresentam enquanto outros ainda não tiveram respostas. Entre eles, questões sobre patentes, regulação e bioética, que englobam saúde, alimentação, autonomia, religião.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal discute, no início de agosto, em audiência pública, a descriminalização do aborto. Foi também o STF que promoveu a única alteração acerca do tema desde o Código Penal de 1940, autorizando o aborto em casos de anencefalia em 2012. O Supremo julgou ainda a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias.
Doutor em Direito e em Ciências, Farmacologia e Toxicologia, o professor Pedro Diaz Peralta, da Universidade Complutense de Madri, entende que muitos desses temas precisam ser enfrentados em conjunto pela comunidade internacional, mas contextos diversos impedem que os debates caminhem dessa forma. Atualmente, ele integra um grupo multidisciplinar de pesquisas no Brasil, como professor convidado.
Peralta trouxe ao país, por exemplo, os debates sobre possibilidade de patentes de seres vivos, ou seja, quando e que tipo de espécies podem ser objeto de proteção legal. “A patenteabilidade dos seres vivos é um campo amplo. Por um lado, o problema de base são as espécies naturais, as espécies vivas que estão na natureza. Entretanto, quando o homem passa a modificar a natureza e cria coisas novas que não existiam antes, nessa condição podemos falar de patente”, diz.
Nessa mesma perspectiva, os dilemas das sementes geneticamente modificadas e possibilidades de utilização delas, bem como o uso para alimentação humana de carne de animais clonados, se colocam. “Assim, se criou um dilema no nosso grupo de estudos de bioética, que é algo que era impensável há 50 anos, mas que hoje é um desafio”, pondera.
Dentro do tema da bioética, ele afirma que a discussão circunda o entendimento sobre valor à autonomia da própria vontade ou se o enfoque é mais protecionista. Os Estados Unidos valorizam, por exemplo, a liberdade dos cidadãos em firmarem contratos para o uso de barrigas de aluguel. O tema é visto na Europa, de forma majoritária, como mercantilização do corpo humano e, portanto, não admitido.
Peralta se tornou referência nesse campo de pesquisa e foi homenageado, no Brasil, com o livro Direito internacional alimentário e da saúde. Regulação dos organismos geneticamente modificados. Biotecnologia. A obra apresenta textos de pesquisadores da comunidade jurídica brasileira, do próprio professor e de integrantes de instituições de ensino internacionais, e eles são apresentados em português, inglês e espanhol. O prefácio do livro foi escrito pelo presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, desembargador André Fontes.
Leia a entrevista:
ConJur — De que forma ciência, Direito e questões éticas são conectadas?
Pedro Diaz Peralta — Eu participo de grupos de pesquisa que reúnem diversos investigadores que estão interessados na regulação, nos problemas que representam as novas questões que surgem nos campos avançados da tecnologia — mais especificamente os dilemas ético-legais da tecnologia, do uso dos recursos naturais, que são conhecimentos tradicionais. Questões fronteiriças, temas que se vão para o Direito ou para a ética porque são questões que, para a evolução da ciência, são necessárias agora. Então o Direito, de alguma forma, tem que dar uma resposta a todas essas questões dentro desse grupo, e nós estamos estamos abordando diferentes campos da tecnologia e do conhecimento tradicional e também questões relativas à saúde pública e um grupo de questões atuais, incluindo também patentes e direito de propriedade.
ConJur — Há quanto tempo vocês estão fazendo esse trabalho?
Pedro Diaz Peralta — Começou agora. Na verdade, foi criado um grupo internacional que terá atividade fora do Brasil também, mas nossos trabalhos começaram já faz uns meses e, ao final, fizemos novos contatos e levantamos questões através de mesas redondas e apresentações, que nos colocaram em contato com pessoas que estão trabalhando e que estão interessadas nessas questões. O grupo está aberto, mas estamos muito focados nisso: em problemas atuais colocados pela nova tecnologia, o Direito, o desafio da globalização — que também é uma questão — e com outros elementos como governança e boas práticas que encarnam também na resposta que tenta dar o sistema para regular aqueles campos especificamente.
ConJur — O senhor trabalha com esses temas há quanto tempo?
Pedro Diaz Peralta — Eu trabalhava na Universidade Complutense de Madri e agora sou pesquisador visitante aqui. Na Complutense, eu trabalhava com outros temas, desde o ano 2000. E eu tive também a sorte de poder desenvolver aqui a instância de pesquisa em uma universidade referência e trabalhar com outro ponto de vista, outras ideias. Essa experiência permite ter o contato com pessoas que estão atuando como pesquisadores, que são experts nisso, que estão estudando as mesmas questões, mas sob outra perspectiva.
ConJur — Dentre os temas que são foco do trabalho, um deles é o da patenteabilidade dos seres vivos. O que é? Do que se trata isso?
Pedro Diaz Peralta — A patenteabilidade dos seres vivos é um campo amplo. Por um lado, o problema de base são as espécies naturais, as espécies vivas que estão na natureza. Patente é um assunto acadêmico que, ao final, na formação de novos regimes internacionais que regulam a patente, vemos que não cabe a proteção de organismos vivos que existem na natureza sem nenhuma modificação do homem. Entretanto, quando o homem passa a modificar a natureza e cria coisas novas que não existiam antes, todo mundo já pensa logo em um organismo modificado geneticamente. Agora, um organismo modificado geneticamente, que não está na natureza ou que não foi descoberto na natureza ainda, embora esteja nela, organismos que são objeto de invenção humana, nessa condição podemos falar de patente. Assim, quando falamos em patenteabilidade, é, na verdade, tratar do limite de o que pode e o que não pode ser submetido à patente. Tratar de organismos vivos que vivem na natureza: o que é patenteável e o que não é. E dentro do que é patenteável porque se trata de invenção humana, deve-se então definir porque esta invenção entra nesta categoria e até onde ela pode ser coberta por essa patente. Sem falar no mais importante, que é o problema da comercialização. Um ponto levantado é da comercialização de produtos geneticamente modificados, como sementes, por exemplo, que o agricultor não pode usar de acordo com a geração sucessiva. Assim, se criou um dilema no nosso grupo de estudos de bioética, que é algo que era impensável há 50 anos, mas que hoje é um desafio. Até onde alcança a patente de sementes de soja ou de milho, por exemplo, que, aqui no Brasil temos muitas modificadas geneticamente? Esse é um debate muito amplo.
ConJur — É possível então a patentear seres vivos dentro desse contexto?
Pedro Diaz Peralta — Segundo a Convenção sobre a Patente Européia, o acordo TRIPs (na sigla em inglês, Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) e outros instrumentos internacionais não admitem a patenteabilidade de ser vivo não modificado pela mão do homem de forma alguma. Há um sistema que se aplica a variedades de vegetais, a híbridos vegetais que surgem a partir do cruzamento graças a manipulações genéticas. Cruzar, por exemplo, uma rosa de um tipo com outra de outra espécie por meio de um enxerto que dá lugar a uma rosa de uma nova cor, ou uma nova característica. Mas isso não é uma modificação genética, apenas um híbrido. Híbridos também podem ser considerados as misturas de determinados animais que podem se cruzar naturalmente na natureza. Em especial, no caso dos vegetais, os híbridos que não são modificados geneticamente são variedades vegetais não patenteáveis, mas que possuem um regime parecido com a patente; um regime sui generis que trata o artigo 27 do tratado TRIPs. O que ocorre é que isso é bem claro em alguns lugares, como na Europa. Lá está claro que isso não é objeto de patente, senão submetido a um regime sui generis. Mas no Direito americano, a jurisprudência definiu que os híbridos, a variedade genética por hibridização, por exemplo, é, sim, patenteável. Isso acabou criando uma polêmica em todo o sistema. No Brasil, pelo que temos visto, há também um sistema misto, mas creio que ele acaba se aproximando mais do americano que do europeu quando se trata dessas variedades. Assim, temos espécies naturais de plantas e animais de todas as ordens, todos os gêneros, insetos, mononucleares, organismos complexos e etc que não são patenteáveis, enquanto no outro extremo os organismos modificados geneticamente são patenteáveis, sujeitos a patentes tecnológicas. Há ainda os híbridos que são manipulação de espécies, mas que ainda não estão de acordo com nenhum sistema no que diz respeito a patenteabilidade.
ConJur — E a posição do senhor em relação a possibilidade desse tipo de proteção?
Pedro Diaz Peralta — É na verdade um problema de conceito. Se se admite a patente, se admite o direito econômico exclusivo durante algum tempo a quem tem a patente. Então o problema derivado é que se impede de alguma forma que outros pesquisadores, por exemplo, utilizem esse produto para criar uma nova linha, porque os direitos dessa patente estão cobertos e não podem ser desenvolvidos. Isso já aconteceu com células-tronco de uma linhagem celular que foram para pesquisa. Alguns pesquisadores e instituições patentearam algumas linhas de células-tronco para desencorajar a pesquisa em outras linhas por outros pesquisadores. Houve, então, um litígio no Tribunal de Justiça europeu, apresentado pelo Greenpeace, questionando se o que pode ser usado pela ciência é ou não patenteável. O Tribunal de Justiça de Luxemburgo, da União Européia, teve que se pronunciar sobre organismos modificados geneticamente e também sobre as células-tronco.
ConJur — Dentro desse contexto tão complexo, qual é o papel do governo, das entidades públicas, dos sistemas de justiça no trato dessa questão?
Pedro Diaz Peralta — O problema é se a legislação é efetiva para alcançar seus objetivos. O problema é a legislação.
ConJur — E hoje então a legislação é omissa?
Pedro Diaz Peralta — Sim, ela não especifica ou não contempla. Deixa lacunas. Houve um problema nesse sentido aqui no Brasil também. O problema é que há um número significativo de normas, mas falta maior esclarecimento sobre qual é o objetivo específico da legislação sobre propriedade intelectual ou propriedade imaterial a respeito de organismos vivos.
ConJur — E qual é a importância concreta desse detalhamento?
Pedro Diaz Peralta — Bem, efeito para o cidadão, primeiro o de estar informado. A transparência é muito importante nesse assunto. A transparência e as normas, para a análise de impacto, para que possam os cidadãos, a parte interessada, buscar e consultar essas informações. Mas, digamos que esse seria o primeiro passo: a transparência da legislação para que as partes possam consultar. E, em segundo lugar, evidentemente que há o interesse econômico e é muito difícil, pois isso depende de cada sistema, conhecer quais são os interesses, quais são as limitações econômicas, sociais etc. etc. que estão sendo ponderados. Cada sistema tem que responder a essas limitações. Se falamos de organismos modificados geneticamente, na nossa cabeça podemos ter mil exemplos. Se efetivamente o Legislativo levar em consideração todos os interesses e criar assim um equilíbrio de interesses, se supõe que a legislação então responderá de maneira mais equilibrada o possível. Encontrar esse ponto médio, isso é o mais interessante.
ConJur — Essas novas tecnologias, todos esses novos formatos estão colocando dilemas desse tipo para os governos e para as populações. São questões novas, muitas vezes não previstas nas legislações vigentes, que chegam em alta velocidade e pressionam por mudanças legais.
Pedro Diaz Peralta — Isso é um problema real. A pressão muitas vezes é um problema, especialmente em uma época que estamos falando de fake news. Nunca se sabe a que corresponde essa pressão, e eu creio que é preciso ter consciência da informação que recebemos e compartilhamos. Se a informação que chega não é verdadeira. Por exemplo, a carne proveniente de animais clonados pode ser consumida com segurança? Esse é um debate que a União Europeia teve de enfrentar. Foi submetido a um comitê científico, e esse grupo de trabalho ficou anos ouvindo as partes até que determinou que essa carne era adequada para consumo. Obviamente, não temos comercializado produtos de animais clonados; mas quando surgem esses dilemas temos que ter uma estrutura científica de consulta. E creio que o Legislativo aqui tem um poder de trabalho desse tipo. É um bom sistema e até mesmo recomendado em ordem internacional para abordar temas muito conflitantes que tratam e dar respostas legislativas a novas tecnologias.
ConJur — São temas que ultrapassam a interpretação e o conhecimento jurídico já firmados.
Pedro Diaz Peralta — O sistema jurídico evidentemente teria que aplicar à legislação. A lei muitas vezes não é focada em uma coisa ou é ambígua e dá lugar a interpretações diferentes. Então o próprio sistema jurídico tem um sistema de recursos para alcançar a verdade jurídica sobre o que se passa dentro daquele tema. É preferível que a legislação aborde todas as alternativas possíveis para evitar que o sistema tenha que se pronunciar sobre aspectos que não estavam contemplados. Ele teria que se antecipar, antes de deixar que ao final de tudo haja um recurso judicial. Respeitando, é claro, a separação de poderes que existe na democracia moderna.
ConJur — Se fosse para o senhor apontar um dilema principal dentro da área da biotecnologia, uma discussão ainda muito controversa, qual poderia ser?
Pedro Diaz Peralta — Pode ser a maternidade substituta, a barriga de aluguel, como é falado por aqui. Não está resolvido e acredito que é muito difícil de se resolver. Muito difícil. Quando um casal que não pode ter filhos contrata uma outra mulher para ficar grávida. É a maternidade substituta. Há diferentes posturas. A americana que fala na autonomia, na liberdade do contrato, que se alguém firma um contrato com uma terceira pessoa esse contrato é válido e o reconhece. Já no sistema europeu, que é garantista, não se reconhece essa mercantilização do corpo humano. O corpo é algo que não tem, que não pode ter um valor econômico. Então o sistema está resistindo em admitir qualquer prática que seja entendida como mercantilização. Pagar por uma mãe de aluguel seria pagar por algo que não pode ser vendido. Veja bem, eu falo isso não por uma postura minha, mas sim que são problemas que abordam essas questões. Podem ser mercantilizados? Pode-se pagar por isso? O que é melhor? O sistema altruísta, livre, grátis, ou um sistema pago? Esses são dilemas que temos em livros de diferentes autores, porque realmente se vamos analisar, no dia a dia surgem muitos problemas desse tipo.
ConJur — Aproveitando essa questão da maternidade eu gostaria de perguntar sobre o aborto também, que, pelo menos no Brasil, é uma questão muito delicada. O avanço da tecnologia também cria questões nesse campo, alterando o entendimento sobre em que ponto começa a vida, por exemplo.
Pedro Diaz Peralta — Bem, tentamos enviar um artigo sobre o problema do aborto no Brasil para uma revista espanhola de bioética e eles o rejeitaram, dizendo que o artigo era cego. A questão é que tentamos encontrar um equilíbrio entre a postura protecionista, do direito à vida, dos não nascidos, nascituros, e de todas as outras considerações e conceitos que partem da autonomia e também da liberdade da mãe. Na Europa, quem vai nascer não tem direitos. Tem para o futuro, mas não nesse momento. E é horrível de se pensar que é um risco que se assume que quando há um perigo na gravidez, ou ainda casos de estupro, casos médicos específicos, abuso e perigo para a vida da mãe. Está claro que, de alguma forma, deve-se ponderar qual é o valor principal. Em outros casos não é tão claro o objeto de debate. Eu venho de um sistema que permite o aborto por prazos: permitido até os três meses sem necessidade de justificativa; não há formalidades. Já no Brasil, é incipiente esse debate que na sociedade europeia, americana ou inglesa, já começou muito antes, já se abordou e resolveu esse tema de uma forma ou outra antes. É um tema até hoje, como vimos com esse artigo, difícil de ser tratado. E esse Estado, essa sociedade, é independente e soberana para decidir quais são os seus limites.
ConJur — Do que tratava o artigo?
Pedro Diaz Peralta — É um tema complicado, e sabemos que há decisões de algumas cortes que reconhecem por pontos particulares, admitindo e regulando questões que não estão bem definidas, como doenças ou perigo de morte da mãe, etc. Mas acabamos nos aproximando de uma abordagem de potenciais mais preventivos: da informação. Partindo do princípio que a cada ano são feitos mais de um milhão de abortos aqui no Brasil, sem mencionar as consequências dos abortos clandestinos, a intenção do artigo na verdade era essa, a de informar, mostrar que formalmente todos os abortos são clandestinos uma vez que não estão legalizados. E aí são estimadas 10 mil mortes anuais de mulheres submetidas a abortos. Propusemos que, de alguma forma, uma melhor informação para as pessoas, para as mulheres que estão no processo de decidir se devem ou não continuar a gestação, evitaria que elas tivessem que se colocar nas mãos de não-profissionais e evitaria essas taxa tão exageradas e elevadas de mortalidade. Passa a ser um tema ético porque acaba afetando também um artigo que trata desse tema. Com esse exemplo, eu simplesmente queria dizer que abordar qualquer aspecto de ética, bioética, segue sendo um desafio de debate e que se procura evitar.
ConJur — Para o senhor a grande dificuldade nesses temas reside na desinformação acerca delas e do limite entre ética, sistemas de Justiça?
Pedro Diaz Peralta — É um problema. E para isso, parece que a melhor solução jurídica seria o aborto por prazos, permitido até os três meses, ou 12ª semana. Não sei qual a proposta, a ação que se tenta aqui. Mas o tema é a vida. Então é complicado, como falar de seres vivos como objetos de direito, a eutanásia — embora a eutanásia seja o outro extremo da vida. Nesse caso se admite o princípio da autonomia da vontade? É curioso que os sistemas que avançam nos dois extremos estão adotando uma legislação mais flexível, por assim dizer, ao invés de um sistema com um enfoque mais protecionista, rejeitando tanto um como o outro. Eu, aqui, simplesmente aponto, não tenho opinião e nem apreço a nenhuma teoria, porque as obras coletivas sobre bioética são úteis para ver todos os ângulos do problema. O problema tem muitos ângulos.
ConJur — Entre esses muitos ângulos, especialmente no Brasil e na América Latina, um deles que tem bastante força, inclusive na determinação de política pública, é o da religião. Como o senhor vê a atuação das igrejas nos debates de bioética?
Pedro Diaz Peralta — Ainda que constitucionalmente seja um Estado laico, evidentemente uma parte importante tem uma tendência religiosa determinada; assim embora seja laico, a população crê. Primeiro que crê, então não é ateia, e em segundo lugar crê em concreto. Então seja onde for, sempre haverá uma porcentagem, em qualquer sociedade, avançada ou não, com maior ou menor grau de educação: sempre há uma porcentagem muito significativa de pessoas que se consideram pessoalmente dentro de uma linha de crença. E quero ressaltar que isto acontece em em toda sociedade independente do nível tecnológico, cultural, social, econômico — sempre há uma porcentagem muito importante da população que se considera fiel a uma crença religiosa determinada, e na realidade a Constituição é feita para o povo, mas cada porcentagem do povo é uma coisa; então há esse dilema. No artigo, também falávamos sobre esse tema, e eu prefiro não opinar. Eu tenho minha opinião, mas creio que é um assunto muito sensível. Só aponto coisas do aspecto bioético. Algumas organizações religiosas proíbem, por exemplo a transfusão de sangue ou transplante de órgãos. Porque proibir uma transfusão de sangue se ela é feita para o fiel, o seguidor dessa corrente religiosa? É muito importante para ele o argumento que a sua religião lhe proporciona, afinal ela o encaminha para o descanso. Então dentro dessa esfera cristã ou católica, os argumentos oferecidos são válidos para essas pessoas. Toda essa influência da religião existe, e tem-se que se ponderar qual é o papel da própria crença no mundo, mas aí não entra o direito e tampouco a ciência.
ConJur — O senhor falou em determinado momento aqui que existem limites éticos debatidos nos dois extremos da vida, do nascituro à eutanásia. Os entendimentos sobre eles tendem a se aproximar nos sistemas jurídicos?
Pedro Diaz Peralta — As ideias sobre quais princípios se usam para regular um fim ou outro e pelo que é ou não admitido e discutido ao se analisar mais profundamente a autonomia da vontade. Esse limite está na autonomia de vontade de que o vivente decide acima de todo o resto. Assim, se a pessoa humana é quem decide sobre o que faz com o seu corpo, então com base nesse princípio, decreto legal ou portaria da legislação não poderia mexer nisso, ele é inamovível. Deixaríamos então a mulher decidir sobre sua gravidez e também a pessoa na fase terminal, ou não — porque poderia decidir sobre a eutanásia sem um perigo de morte imediato — sobre a continuidade da vida. Mas, se partimos do princípio que o direito da vida é sagrado, que a prioridade seria manter a vida, então é lógico pensar que há restrições. Há dois tipos de eutanásia, ativa e passiva. A ativa é por meio de alguém que a defina e a passiva, por sua vez, seria negar os recursos médicos e terapêuticos. Isso tem gerado uma polêmica quase diária. Não sei se isso acontece aqui, mas no meu país já vi vários casos como por exemplo quando suspendem a assistência médica, eliminando respirador e tudo o mais. Essa seria uma eutanásia passiva, ou seja, não dar o remédio para que aquele paciente siga com vida. E isso é também um tema de debate no país, que alguns dizem que deve-se seguir com o tratamento até o fim, e outros dizem que não, que não há porque deixar a pessoa com um sofrimento desnecessário ao que não tem mais solução. Isso também é eutanásia passiva. Tem o “encarnizamiento terapéutico” que seria insistir, aprofundar; não é uma tradução fácil em português, mas o encarnizamiento é todo o oposto — e também já ocorreu — que é os responsáveis de uma pessoa que não pode decidir por ela mesma decidirem não continuar com o tratamento porque ela vai necessariamente apenas sofrer e morrer e então a direção do hospital não permite essa interrupção. Há um caso na Espanha em que os pais tiveram que ir a um juiz e ele não pode se pronunciar, dizer nada porque isso não estava legislado. Ocorreu em Santiago de Compostela, na Galícia, e houve um grande conflito, saiu na televisão, na imprensa; e aí acabou ocorrendo uma arbitragem, uma conciliação, um acordo em função do que eles disseram como representantes, porque não havia legislação. Podem surgir dilemas a todo tempo.
ConJur — Questões de bioética, de patenteabilidade, tecnologia, essas pautas estão sendo discutidas pela comunidade internacional em conjunto?
Pedro Diaz Peralta — Sim. Esses debates estão em um nível global e assim tem um fluxo de informações entre a sociedade, as universidades, a ciência, o Direito; há um amplo desenvolvimento de todos esses campos. Mas dentro desses debates sempre há muitos elementos, e, no final, o legislador tem que ter a última palavra. Por exemplo, sobre doação de órgãos, os acordos que previnem o tráfico de pessoas são importantes, porque não há outro remédio que não entrar em um acordo internacional sobre isso. Um acordo internacional que proíbe o tráfico de pessoas ou de órgãos é algo que tem que chegar a um texto final por consenso, já que tem que valer para todo o mundo. O problema é que há debates que poderiam ter respostas em acordos internacionais, que seriam ideais como postura para resolução desses dilemas, mas que há outros debates que o impedem, por não superar barreiras nacionais.
ConJur — São questões diferentes que surgem em diferentes contextos.
Pedro Diaz Peralta — Se compararmos tudo o que dissemos, me ocorre agora como enfrentamos o debate de ser ou não vegetariano. Porque é exatamente o mesmo. Ser vegetariano ou não ser vegetariano realmente não tem consequências legais, mas simplesmente porque há debates que precisam da intervenção do Direito para serem resolvidos, por exemplo o direito de nascer; e há outros debates que não precisam da intervenção do Direito, como ser vegetariano ou não. É uma mera reflexão. Quando se aborda os temas de bioética ou de ética em geral, que têm a ver com seres vivos de alguma forma ou outra sempre encontramos com a tese e a antítese. Sempre há diferentes pontos de vista; como ser vegetariano ou vegano, que vegano é um caso extremo de vegetariano. Mas o vegano sim que é um problema, de um ponto de vista; eu não critico, não vou criticar o ser vegetariano ou não, mas o vegano deixa de consumir uma série de coisas que são essenciais para vida, e eles não consomem certos elementos como vitaminas, aminoácidos essenciais, e outros que são por exemplo necessários para o bom funcionamento do cérebro. Então se um vegano por exemplo nega certos alimentos a seu filho de um ano, o seu desenvolvimento poderá ser comprometido. Estou aqui falando de uma questão que eu não gosto de personalizar, mas simplesmente estou propondo como outro objeto de debate. Sendo verdade que não há um dilema ético ou dilema jurídico legal em ser vegetariano ou não, pode ser que haja em ser vegano ou não dentro do vegetariano porque há que se unir ciência e Direito dentro de um grupo de pesquisa multidisciplinar como o do livro, que é uma iniciativa de alto valor porque une todas as perspectivas e ao ouvir todas as perspectivas é sempre melhor de se analisar. E mais uma vez, eu tive muita sorte de ter o contato com pessoas no Brasil com mentes tão dinâmicas e abertas a analisar todas essas questões que estão abertas no mundo.
Ana Pompeu é repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Conjur