O MINISTÉRIO PÚBLICO: O MÉDICO E O MONSTRO
Jekyll e Hyde. Conflitos políticos e ambientais (e outros tantos mais…)
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
A Essência do MP
Dentre os atores institucionais atuantes na resolução dos conflitos, em especial os de natureza ambiental, o Ministério Público é, sem dúvida, o melhor equipado.
A Constituição Federal conferiu ao MP condições funcionais, materiais e técnicas que superam em muito os demais órgãos da Administração Pública, inclusive o Poder Judiciário.
Detém o MP capacidade de buscar o ajustamento de conduta do atores envolvidos em crises institucionais e conflitos legais e regulatórios, superando impasses normativos, burocráticos e até mesmo judiciais. Pode, nesse mister, fazer uso de seu poder de requisição e persecução.
Quando falham os meios de resolução extrajudicial, pode e deve o MP fazer uso do monopólio que dispõe para o ajuizamento de ações penais; utilizar-se da sua desproporcional capacidade de requisitar, instruir, elaborar e ajuizar ações civis públicas, visando a reparação de danos causados ao meio ambiente ou à outro bem ou interesse legalmente tutelável, ou então a imposição de obrigação de fazer ou não fazer ao recalcitrante.
A conflituosidade, intrínseca aos direitos de natureza difusa, como o ambiental, torna o papel da instituição ministerial mais destacada ainda. Por óbvio, isso impacta toda e qualquer atividade de natureza política ou econômica afeta à matéria em causa – pois quase sempre outras instituições encontram-se no cerne dos conflitos.
Essa importância do MP cresce ainda mais na hipótese de ocorrer judicialização, mormente por ser cediço que a tutela judicial não significa efetiva resolução do conflito.
Dupla personalidade
Ocorre, no entanto, que o Ministério Público brasileiro tem multiplicado episódios de perda de foco na sua atuação. Esse fato tem gerado repetidos questionamentos quanto ao valor, eficiência e finalidade do órgão no regime democrático e republicano brasileiro.
Feitos os questionamentos, advém seguidos debates apaixonados e reações corporativistas preocupantes.
É como se existissem dois Ministérios Públicos:
a- do lado bom, um zeloso cumpridor dos seus deveres constitucionais, defensor dos valores morais, da legalidade e do Estado de Direito, por todos admirado;
b- do lado mau, um feroz criador de casos, arrogante, arbitrário, beirando à leviandade, causador de instabilidade institucional e nocivo às instituições democráticas da República.
“O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, novela de ficção científica e terror, escrita pelo autor escocês Robert Louis Stevenson (1886), narra a história de um advogado londrino chamado Gabriel John Utterson, que investiga estranhas ocorrências entre seu velho amigo, Dr. Henry Jekyll, e o malvado Edward Hyde.
Como um velho amigo do Ministério Público, e também advogado, me inspiro no personagem de Utterson para entender o que ocorre com essa importante instituição.
O que ocorre?
A capacidade de fiscalização, tutela e entendimento da lei, por parte do MP, não raro se vê diluída em interesses ideológicos biocentristas, contaminada por históricos de militâncias e ativismos políticos, tornando a instituição refém de interesses pouco afetos à sua finalidade constitucional.
Essa diluição de atribuições desagua no caudal de matérias exógenas à competência legal do órgão.
Com isso, em vez de resolver, o MP gera conflitos.
É notícia comum promotores e procuradores ditarem regras, fazerem pronunciamentos, emitirem recomendações ou ajuizarem ações visando impor teorias, ideias preconcebidas do que seja a correta matriz energética nacional, a organização territorial do sistema de geração de energia, a definição de vetores de planejamento territorial e políticas de desenvolvimento – até mesmo aquelas já discutidas no bojo do processo legislativo e na esfera de atribuições e decisão governamental. Não raro postulam os promotores e procuradores da república, alterações de políticas públicas, questionam critérios e metas de desenvolvimento econômico regional, interferem no atendimento à demanda por infraestrutura, na eleição política de prioridades de interesses econômicos e ambientais, na política florestal, etc.
Há quem se arvore, no bojo da instituição ministerial, em ditador de regras e comportamentos para os outros, tão somente fazendo uso do chamado “pan-principiologismo”, como se o postulante ou inquisidor não mais se submetesse ao Estado de Direito e, sim, a um “Estado de Princípios” – estes, obviamente, interpretados ao talude do luminar no exercício da autoridade ministerial…
O diagnóstico
Embora constituído por indivíduos concursados e investidos na carreira pública, não é o Ministério Público um Poder da República, tão pouco um formulador de Políticas Públicas ou governamentais.
Não detém o MP mandato popular ou investidura constitucional para conduzir formular ou articular política. Não compete ao MP se imiscuir na esfera de decisão afeta aos poderes da república. Não cabe ao MP usurpar cargos políticos afetos à soberania popular para dirigir entes federativos.
O limite do MP é seu próprio objeto de atuação: a fiscalização da lei, a defesa dos interesses difusos e coletivos e o ajustamento de conduta para a resolução dos conflitos decorrentes.
Não deve e não pode o MP gerar conflitos, estimular ou articular discórdias ideológicas, políticas ou partidárias.
Há de fato muita confusão entre o que deve pensar a instituição e o que efetivamente pensa o membro oficiante que a ela pertence. Isso decorre da excessiva autonomia concedida pela estrutura funcional do MP a seus promotores e procuradores.
Essa descontrolada liberdade de agir foi conferida a promotores e procuradores por conta de conduções corporativistas, progressivamente permissivas, advindas de administrações fracas, diluídas, espasmódicas, sucessivas, na direção dos vários órgãos estaduais do MP e da Procuradoria Geral da República.
Esse fenômeno acarretou perda do foco da atividade funcional do representante do MP, conferindo um entendimento equivocado dele poder usufruir de uma capacidade de postulação orgânica, similar à do ministério privado da advocacia.
Ocorre que esse comportamento é absolutamente vedado por força do princípio constitucional da legalidade – pois que o agente público, ao contrário do cidadão, só pode agir quando expressamente autorizado pela norma legal, dentro dos limites por ela conferidos. Não cabe ao agente do MP, portanto, inovar ou transcender, ignorando os limites da norma. Muito menos poderá usurpar ou postular para além de sua esfera de atribuições.
Essa disfunção tem contaminado o Ministério Público, suas coordenadorias especializadas, e Conselhos (objeto de um outro artigo de minha autoria – “A Ditadura da Caneta”).
Os efeitos são gravíssimos: insegurança jurídica, idiossincrasias comportamentais e quebra do princípio da unicidade na tutela da lei – esperada da corporação. O fato só tem contribuído para maior judicialização dos conflitos, como se percebe, por exemplo, nas demandas ambientais.
Análise comparativa
Essa autonomia sem controle, é preciso ser dito, constitui teratologia institucional sem paralelo no mundo.
Nos Estados Unidos, o Procurador Geral da República (“The United States Attorney General”) é indicado pelo Presidente e aprovado pelo Senado, sendo demissível ad nutum pelo próprio Presidente. O Procurador Geral chefia 94 (noventa e quatro) Procuradores Federais Distritais (“United States Attorneys”) que também são nomeados e podem ser demitidos. O Procurador-Geral da República e os Procuradores Federais Distritais têm autoridade para nomear e demitir seus assistentes, denominados respectivamente como “Assistant United States Attorney General” e “Assistant United States Attorneys” – isso no âmbito federal americano.
Na França, o MP é hierarquizado e integra o Poder Judiciário, estando submetido ao controle do Ministério da Justiça. O Ministro da Justiça detém poder para impor sanções disciplinares aos membros do MP, o que inclui até a destituição do cargo, após parecer de caráter consultivo do Conselho Superior da Magistratura. Esse Conselho é composto por cinco membros: um juiz, um conselheiro de Estado, eleito pela Assembleia Geral do Conselho de Estado, e três personalidades que não pertencem nem ao Parlamento nem ao Poder Judiciário, designados pelo Presidente da República, pelo Presidente da Assembleia Nacional e pelo Presidente do Senado.
Já na Itália, o MP integra o judiciário e se submete ao Conselho Superior da Magistratura. Segundo a Constituição da Itália, esse Conselho é presidido pelo Presidente da República e composto por 21 membros, dos quais 14 são juízes de carreira eleitos pela classe e sete são indicados pelo Parlamento, dentre professores e advogados. Ele tem como atribuição aplicar sanções disciplinares, desde advertências até a destituição do cargo. O procedimento disciplinar pode ser iniciado tanto pelo Procurador-Geral, quanto pelo Ministro da Justiça.
O Ministério Público italiano, ademais, não tem entre as suas atribuições a defesa da sociedade nem legitimidade para ingressar em Juízo representando-a.
Autonomia, portanto, não significa ausência de hierarquia, muito menos de respeito à hierarquia, à disciplina e controle funcional iníquo, interno e externo, como ocorre hoje no Brasil.
A cura
A instituição do MP deveria assegurar que seus membros coordenassem ações visando harmonizar o comportamento do órgão no que tange aspectos legais, decorrentes dos conflitos inter-institucionais e ambientais.
Deveria evitar, de forma sistemática, que promotores e procuradores se imiscuíssem em procedimentos técnicos ou administrativos típicos dos órgãos de governo, legal e politicamente competentes, reservando-se ao controle externo.
Deveria coibir o uso de mecanismos persecutórios para influenciar decisões de caráter político ou técnico-gerenciais – principalmente quando ainda não concluído ou ainda em andamento o processo interno de decisão.
Conclusão
A independência ilimitada concedida aos procuradores do MP brasileiro, como se vê, não tem paralelo no âmbito internacional e deve ser observada com reserva e cautela pelo Poder Judiciário, pelo Poder Executivo e, sobretudo, pelo Poder Legislativo, pois se trata de perigosa deformidade institucional com risco latente de distorcer o Estado Democrático de Direito.
A gloriosa luta contra a corrupção, que não é travada com exclusividade pelo MP, não deve ser inibida. Porém, não deve servir de apanágio para inibir iniciativas legítimas visando restabelecer o equilíbrio constitucional entre instituições, acovardar políticos, estimular militâncias pouco comprometidas com o pluralismo.
A defesa do Ministério Pùblico, enquanto instituição essencial ao Estado Democrático de Direito, não impede que se busque o constante aperfeiçoamento institucional, e que se possa corrigir distorção grave que possa afetar a própria democracia, os direitos e garantias fundamentais, a harmonia entre os poderes e o desenvolvimento sustentável.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Jornalista, é Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal, Editor da Revista Eletrônica DAZIBAO e editor do Blog The Eagle View.