MANUAL JURÍDICO DA ESCRAVIDÃO

“A escravidão exigia um instituto jurídico para manter milhões subjugados”

 

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Por Ana Pompeu*

Ao declarar a independência do Brasil, em 1822, D. Pedro manteve aproximadamente 1,2 milhão de escravos, em um universo de 3,7 milhões de pessoas. Entre 1830 e 1852, acredita-se que mais de 640 mil africanos foram trazidos ao país, apesar de haver argumentos que indicam que esse número superava a casa de 700 mil cativos.

Em 1848, quando já era proibido o tráfico de escravos há 17 anos, estima-se que 60 mil indivíduos tenham sido contrabandeados para o Império do Brasil. O Brasil foi a última nação do Ocidente a abolir a escravidão, em 1888, 23 anos após os Estados Unidos. Com uma realidade com números tão elevados, o sistema judicial vigente teve de lidar com as questões que surgiam com a manutenção da população negra escravizada.

Neste domingo, 13 de maio, a assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel, que acabou com a escravidão no país, completa 30 anos. Mas os movimentos negros não celebram a data. Enxergam a assinatura da lei como uma manobra política, já que o fim da escravidão não foi acompanhada por qualquer esforço de integração dos libertos no novo regime de organização da vida e do trabalho. O dia é tido como de reforço da luta antirracista.

Nesse contexto, jogar luz sobre a escravidão no Império brasileiro sob uma perspectiva jurídica pode dar mais elementos para compreender como ela aconteceu. É a proposta do procurador da Fazenda Nacional André Barreto Campello, autor do livro Manual Jurídico da Escravidão: Império do Brasil.

A obra aborda de forma pouco usual a escravidão no Brasil no século XIX. “A elite brasileira temia uma insurreição negra de grande porte, como a do Haiti. Construíram, então, uma legislação penal para lidar com isso, evitar que acontecesse, reprimir”, afirma. “O escravo era uma coisa ou uma pessoa? Era uma coisa. Mas, sendo assim, estava livre de responder por delitos que cometia? Não. Era como um animal para o direito, um semovente”, afirma.

O trabalho pensa a dinâmica jurídica do sistema que remete impactos ainda hoje no Brasil, conforme analisa o autor, como desigualdades sociais e o preconceito racial.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual a importância de se dedicar ao tema da escravidão no ambiente jurídico nos nossos tempos?
André Campello — O grande problema é que ainda hoje se estuda a escravidão como se fosse um apêndice da história do Brasil. Nas aulas de História da educação básica, no que é transmitido na televisão, quando a gente estuda Brasil Império e Colônia, sabemos que houve escravidão. Mas ela é colocada de lado, marginal. Fatos como a Guerra da Cisplatina, a Revolução Pernambucana, por trás de todos eles está também o sistema escravista. A existência desse sistema dá uma dimensão diferente para todos os eventos e nós não temos noção disso. Em 1850, 31% da população era composta por escravos — e nem estou falando daqueles que foram alforriados. Se fosse hoje, seriam 60 milhões de indivíduos escravizados. Eles não estavam escondidos da realidade. Ao contrário, estavam completamente inseridos na realidade brasileira. Se pensarmos em algumas regiões onde existia o uso intensivo da mão de obra escrava em plantations, a população escrava superava em muito a branca livre. Podemos citar o Recife e a Zona da Mata pernambucana, Salvador e o Recôncavo Baiano, São Luiz do Maranhão e a região algodoeira, Rio de Janeiro e o Vale do Paraíba, chegando em São Paulo. É um dado importantíssimo para se levar em conta na nossa história. A população escrava não era uma população urbana, mas eminentemente rural. Quando a gente pega Jean-Baptiste Debret, Johann Moritz Rugendas, aqueles desenhos do século XIX, a gente pensa no escravo nas cidades. Mas era na atividade econômica das grandes plantações que a maior parte deles estava. Mas, ao mesmo tempo em que o escravo era a base da mão de obra produtiva daquele sistema escravista, também era visto como o grande problema da segurança pública.

ConJur — Como assim?
André Campello — A elite brasileira temia uma insurreição negra de grande porte, como a do Haiti. Construíram, então, uma legislação penal para oprimir. O sistema escravista era perverso, a bondade individual não transmutava a natureza perversa do sistema. E a escravidão era algo universal no Brasil. Chegou-se a um ponto em que existia escravos em todas as vilas do país. Ter um escravo era visto como um indicativo de status. Como hoje um indivíduo diz que comprou um carro novo, com tais características. Era tão universal, que até mesmo vários libertos, alforriados, compravam outros escravos.

ConJur — E por que escrever um “manual jurídico?
André Campello — Porque existia um sistema jurídico da escravidão. Como é que se manteria essa quantidade de gente escravizada, abusada, sem que houvesse uma estrutura legal para oprimir esse povo? Para que não se revoltasse? Jamais teria sustentação! Diante disso, o manual entra nesse universo macabro, mas sob uma perspectiva jurídica, vendo quais eram os mecanismos de opressão no direito penal, administrativo, tributário.

ConJur — O senhor disse que a escravidão era considerada um problema de segurança pública. Por quê?
André Campello — As autoridades receavam não apenas que viessem a ocorrer grandes insurreições, sobretudo nas regiões com exploração intensiva da mão de obra dos cativos. Também temia-se a agressividade e os crimes que pudessem vir a ser cometidos por escravos no âmbito da vida doméstica, contra senhores e suas famílias, ou do trabalho, contra feitores, administradores etc. Surgiu então uma legislação processual especial para aterrorizar os escravos, aplicando de forma fulminante a pena de morte. Direito Penal do Inimigo, assim poderia ser classificada a estrutura normativa para coibir o elemento servil, os escravos.

As autoridades públicas sabiam que muitos dos escravos eram estrangeiros que não falavam português e que não haviam adotado a religião cristã, haviam sido capturados e importados de longínquas terras, à força, e submetidos a um transporte transatlântico vexatório e degradante. Essa mão de obra iria trabalhar em jornadas extenuantes, com péssima qualidade de vida, submetida a atos potenciais ou efetivos de violência por parte dos seus proprietários e respectivos prepostos. O legislador enxergava o elemento servil como que composto por indivíduos extremamente ressentidos, de ódio e fúria contidos, prontos para explodir na primeira oportunidade contra seus senhores, suas famílias ou seus empregados. Por essa razão, a melhor maneira de interpretar a legislação penal aplicada em face de crimes perpetrados pelos cativos é vê-la como um Direito Penal do Inimigo.

ConJur — De que forma um escravo era visto pelo sistema judicial?
André Campello — O escravo tinha uma natureza de coisa, então ele podia ser vendido, hipotecado, se tornar objeto de seguro, alugado. O nível de desumanização chegava a esse ponto. No âmbito civil, por exemplo, era permitido ao escravo se casar. Ao mesmo tempo, a família que se formasse entre os escravos podia ser dissolvida se um deles fosse vendido para outro senhor. O escravo era uma coisa ou uma pessoa? Era uma coisa. Mas, sendo assim, estava livre de responder por delitos que cometia? Não. Era como um animal para o Direito, um semovente. Um escravo era semelhante a isso, ainda que estivesse submetido aos ritos criminais do Império. Essas contradições permeavam todo o sistema escravista. Além da parte criminal, isso fica bem evidente no Estatuto Civil do Escravo.

ConJur — Como funcionava?
André Campello — O escravo era tratado como um bem semovente, como um animal. Um cavalo no meio jurídico é uma coisa, mas se move. O escravo era isso. Mas ele poderia ser usado como um escravo de ganho, poderia praticar negócios jurídicos, poderia sair pelas ruas vendendo produtos para as pessoas e o que ele arrecadasse teria que devolver ao seu senhor. Esses negócios, esses contratos firmados pelo escravo eram válidos? Não era uma coisa? Veja como o sistema era estranho. Estas questões não eram apenas divagações teóricas. Ao contrário, a escravidão era o centro do sistema produtivo brasileiro. Várias escravas eram colocadas na prostituição, que não era legalmente tolerada naquele período. Muitos alegaram que à luz do direito romano tais escravas deveriam ser liberadas. O direito romano tinha a escravidão como suas bases jurídicos-econômicos. Sobretudo no período justiniano, se a escrava fosse usada para a prostituição ganhava a liberdade, porque aquilo agredia a moral, os bons costumes. Mas no Brasil, não.

ConJur — Esse sistema jurídico contribuiu para que o Brasil fosse um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão?
André Campello — O grande problema para conceder liberdade aos escravos era que a propriedade não poderia ser agredida, era o bem maior. Era tão sacrossanta que, pela Constituição de 1824, só poderia ser atacada se houvesse indenização. Entre o direito à liberdade e o direito à propriedade, este último era o zelado no período. A Lei do Ventre Livre nos é ensinada como uma lei que, em 1871, libertou os filhos das escravas. Não foi bem assim. Ela libertou os filhos das escravas, mas o senhor poderia escolher entre receber uma indenização paga pelo governo ou exigir que aquele filho nascido depois da promulgação da lei trabalhasse para ele até os 21 anos para compensar o prejuízo. Da mesma forma aconteceu com a Lei do Sexagenário. Juridicamente, o homem ou mulher escravizado com mais de 60 anos é livre. Mas não. Ele ganhava status de liberdade, mas tinha de trabalhar por mais um período para indenizar o senhor. O sistema é continuamente construído em cima de contradições. O Poder Judiciário só começou a reformular sua postura quando a causa abolicionista ganhou a maior parte da classe média urbana.

ConJur — Como essas questões eram tratadas no Judiciário?
André Campello — Escravo não tinha capacidade jurídica. Era uma coisa e não poderia postular diretamente no Judiciário a sua liberdade. Ele tinha que ter um curador, uma pessoa que ia defender os direitos dos escravos por meio de petição em prol daquela pessoa. Um dos maiores curadores que se tem notícia é Luís Gama. Os argumentos usados eram muitos. A chamada “lei para inglês ver”, por exemplo, de 1831. Ela determinava que qualquer escravo que ingressasse no Brasil a partir daquela data estaria livre. Mas foi uma lei para atender a uma pressão da Inglaterra pela abolição. Os negros continuaram escravizados. Luis Gama várias vezes denunciou que aquele indivíduo importado do porto de Lago, da Nigéria, por exemplo, estava sendo escravizado. Por várias vezes ele ganhou. Ele mesmo estima que, por meio do Judiciário, libertou por volta de 500 escravos. Muitos buscaram o Judiciário por meio de ações de liberdade.

ConJur — Ainda hoje, no Brasil, passados 130 anos da abolição, os movimentos negros falam em reparação histórica quando pleiteiam cotas, por exemplo. Qual a conexão que o senhor faz entre a abolição e a situação da população negra no Brasil atual?
André Campello — Os abolicionistas, entre eles o próprio Joaquim Nabuco, não viam a abolição como um fim em si mesmo. Deveria existir a implementação de ações governamentais para incluir aquele gigantesco grupo de excluídos na sociedade brasileira. O caminho para isso seria a educação. Outro aspecto a se pontuar é que nada do que temos hoje se compara aos horrores da escravidão. Não era um contrato. Hoje nossa sociedade se ampara em contratos. Há uma relação jurídica em que existe a liberdade para trabalhar, para sair, a possibilidade de recorrer a leis que lhe protegem na sua jornada de trabalho. Isso não acontecia na escravidão. O que existia era a submissão completa. A realidade do século XIX era muito diferente. Infelizmente, a meu sentir, no entanto, os horrores da escravidão ainda assombram o Brasil. Isso porque foram 350 anos de trabalho escravo e pouco mais de 100 anos de trabalho livre. A nossa CLT, que nasceu em 1942 e para proteger apenas alguns tipo de profissões, é muito recente. A Constituição que universalizou os direitos da CLT é de 1988. É muito recente. A proposta dos abolicionistas continua válida.

ConJur — Se alguns escravos conquistaram a liberdade por meio do Judiciário existem registros de senhores de escravos responsabilizados por abusos de algum tipo?
André Campello — Veja que coisa absurda: numa nação escravista o monopólio da força não está nas mãos do Estado. Está dissolvido pela sociedade, sobretudo nas mão dos senhores. Eles poderiam aplicar penalidades a seus escravos, como açoites, e isso era previsto na legislação. Mas ele não poderia aplicar uma penalidade a ponto de matar seus escravos. Isso era vetado. Claro que era a letra da lei, mas, na prática, a realidade era outra. Vários senhores abusaram do seu direito de punir e mataram seus escravos. E existiam processos numerosos com acusações do tipo. Mas não cheguei a encontrar condenação de senhores no material que pesquisei.

ConJur — Existia uma parcela relevante de se lembrar de integrantes do Judiciário, entre juízes e promotores, com uma visão diferente daquela vigente em relação à população escravizada?
André Campello — O Judiciário só começou a mudar ideologicamente a partir da década de 1880. O movimento abolicionista foi que realmente transformou a visão da sociedade brasileira acerca da escravidão e levou o Judiciário junto. Aí sim parte significativa do Judiciário começou a acompanhar. Mas não dá para dizer que se tratou de um movimento uniforme e nacional. Era mais marcante nos grandes centros urbanos. O movimento ganhou força quando algumas províncias começaram a reconhecer, como o Ceará, que foi o primeiro, seguido de Amazonas e Rio Grande do Sul, que não poderia mais haver escravos nos seus territórios.

ConJur — O sistema escravagista também tinha implicações na área tributária?
André Campello — O tributo busca incidir sobre fatos da vida da sociedade que tragam consigo um conteúdo econômico relevante. O Estado deseja tributar fatos que estejam relacionados à criação da riqueza na sociedade. Na economia brasileira do século XIX, na perversa lógica do sistema escravista, as relações jurídicas que envolvessem a importação, a circulação e a propriedade de escravos traziam consigo relevante conteúdo econômico. O abjeto direito de propriedade que incidia sobre os cativos era, portanto, fonte de receitas para o Estado, em face dos tributos que incidiam sobre esse odioso “direito” e também sobre a circulação desses seres humanos transformados em mercadoria.

ConJur — Quanto tempo de pesquisa foi necessário para produzir esse manual?
André Campello — O tema surgiu para mim na época da faculdade. Foi quando encontrei um livro que estava para ser descartado, de Décio Freitas. Era sobre a cidadania e falava sobre índios e escravos. Quando li, pensei que tinha algo que não tinha entendido. O livreto trazia informações que eu nunca tinha ouvido falar. Isso me despertou curiosidade, mas eu não tinha maturidade jurídica na época para transformar essa curiosidade nesse trabalho. Mas fui pesquisando aos poucos. Em 2008, publiquei um artigo sobre o assunto num jornal local de São Luís. Depois publiquei um artigo acadêmico, e então um livreto. E achava que tinha que evoluir. É um processo antigo de pesquisa. A pesquisa era contínua e a questão era pensar em como ia transmitir o conteúdo. Não se trata de um tratado sobre a escravidão, não se pretende ser uma obra completa sobre a escravidão no Brasil. Não existe isso. Se alguém quiser se aventurar para fazer isso seria interessante. Mas o livro é um ponto de partida para estudar a escravidão, porque, de forma simples e sistematizada, mas não superficial, a gente entra nesse universo para explicar como funcionava o sistema jurídico para manter esse sistema que escravizava milhões.

ConJur — Falta bibliografia sobre esse assunto?
André Campello — Não falta bibliografia. O material sobre a escravidão é gigantesco. O problema não é a quantidade de bibliografia, mas organizá-la para apresentar o tema de modo sistematizado, claro, objetivo ao leitor. A abordagem é que é diferente no livro. É isso que torna o livro único. Ele aborda o instituto jurídico da escravidão. E falo de instituto jurídico porque é um sistema para subjugar milhares de pessoas. Pode-se dizer que toda relação humana que imponha uma dominação, é uma relação de poder. Mas não era apenas uma relação de poder, mas uma sujeição absoluta de um indivíduo a outros. E onde há sociedade há direito. Imagine milhões de mulheres e homens submetidos dessa forma? É claro que haveria de existir um instituto para submeter essas pessoas. Faltava organizar tudo isso.

*Ana Pompeu é repórter da revista Consultor Jurídico.

 

Fonte: Conjur

 


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