LIXO E CRIME ORGANIZADO
A Poluição Ambiental do Crime Organizado
A relação do lixo com a Máfia e o uso do saneamento ambiental como forma de combate à criminalidade e lavagem de dinheiro.
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O Triângulo da Morte
O crime organizado polui.
Agentes da Divisão Investigativa Antimáfia e autoridades do sistema de controle ambiental de Nápoles resolveram agir de forma articulada. Prospectaram o norte da província e localizaram barris de lixo tóxico enterrados na região.
Dois membros da organização criminosa Camorra foram presos. Convertidos a informantes, apontaram os locais de descarte clandestino de resíduos tóxicos, numa área conhecida como Triângulo da Morte. A região ganhara o apelido por conta do número significativo de casos de câncer na população.
A agência ambiental italiana estima que 10 milhões de toneladas de lixo tóxico foram ilegalmente enterradas desde o começo dos anos 90, gerando bilhões de dólares de lucro para a Máfia. Estes resíduos contaminaram o solo e a água.
Legislação eficaz faz toda a diferença
Todas as ações criminosas e poluidoras, por incrível que possa parecer, eram há anos amplamente conhecidas e documentadas.
No entanto, a disparidade de normas ambientais italianas não permitia um combate mais eficaz ao fenômeno. Isso só se tornou possível com a consolidação da legislação ambiental, no ano de 2006.
Foi o novo Código Ambiental italiano que sistematizou procedimentos e definiu competências, entre as autoridades locais e nacionais, permitindo implementação conjunta do controle da poluição e combate ao crime ambiental.
A Camorra napolitana domina tradicionalmente o negócio do lixo em Nápoles. De há muito, o crime organizado vem enfrentando sucessivos governos que intentam moralizar a coleta e a disposição final de resíduos na região. Greves de coletores e catadores, patrocinadas pela Camorra, já fizeram a região se afogar em lixo várias vezes.
A última greve, ocorrida no ano de 2013, foi decisiva, no entanto, para a implantação de um sistema conforme a normativa europeia de destinação adequada dos resíduos.
Após ter o governo italiano atuado com decisão e vontade política, as manifestações criminosas foram reprimidas. O novo ambiente permitiu, então, a instalação de aterro sanitário concessionado e consequente desativação dos lixões controlados pela máfia.
A modernização das leis ambientais italianas ocorre vinte anos após a consolidação das reformas penais, constitucionais e institucionais, que conferiram extraordinária força às unidades de combate ao crime organizado.
A junção de marcos legais abriu uma nova frente de combate contra a máfia, atingindo-a no coração de sua estrutura de lavagem de dinheiro e conexão com a Administração Pública: o lixo.
Graças a essa interação de normas, foi possível usar o já consagrado sistema de barganha penal – para gerar criminosos ambientais “arrependidos”, que contribuíram decisivamente para a geração de provas e indícios de um horrendo crime ambiental – sensibilizando o sistema de justiça italiano para a profunda correlação entre o negócio da poluição, a corrupção e a criminalidade organizada no país.
A tragédia humana e ambiental
O “Triangulo da Morte” concentrava o descarte de lixo administrado pela máfia.
Sua gravidade tornou-se evidente com a contínua queima de resíduos, que deu à região o apelido de “Terra dos Incêndios” (Terra del Fuochi).
“O ambiente aqui está envenenado”, disse o cardiologista Alfredo Mazza, que detectou um crescimento alarmante da ocorrência de câncer na região em um estudo de 2004, publicado no Lancet – jornal tradicional da medicina britânica.
“É impossível limpar tudo. A área é muito vasta. Estamos vivendo em cima de uma bomba”, informou o médico.
Em recente matéria, o site brasileiro Planeta Sustentável relatou um fato que passou desapercebido (como sempre) pelos jornalões e imprensa nacional (que não mais impressiona…). Um grupo de mães italianas protestou, no início de 2014, em Roma, em frente ao palácio do governo, pela morte de suas crianças. Um padre da região de Nápoles, Maurizio Patriciello, as acompanhou na manifestação.
Elas viajaram para a capital como representantes de cerca de 150 mil mães, que enviaram ao presidente italiano cartões postais com as fotos de crianças atingidas pelo câncer.
A pressão obrigou o governo italiano a dar um fim aos crimes ambientais cometidos na região, há décadas.
A cultura mafiosa já gerava outra poluição – a cultural, com a proliferação de bailes funkies, na região de Nápoles.
A exposição solar da poluição provocada pela atividade criminosa abalou, contudo, definitivamente, a imagem de “vida bandida” esteticamente aceitável da máfia napolitana. A final, o combate á poluição era causa também açambarcada pelos “politicamente corretos” (que absurdamente “toleravam”, em nome da “pluralidade cultural”, a ostentação mafiosa).
A defesa da saúde e do ambiente é realmente cara à juventude e à população em geral. Deve, portanto, ser o mote para um eficaz combate á criminalidade – a qual também polui.
Caiu, assim, a máscara “social” do crime organizado napolitano.
O “benemérito lixeiro da sociedade italiana” revelou-se, finalmente, o monstro poluidor e homicida que é – responsável pela deterioração do meio ambiente e da saúde de milhares de inocentes pelas próximas gerações.
Lixo: lavanderia do dinheiro do tráfico
A relação do crime organizado com o lixo é mais notória que se pensa, em todo o mundo.
Dou um testemunho: Em 1997 tive a oportunidade de acompanhar vinte e oito delegados de polícia brasileiros em um curso proporcionado pela polícia italiana – divisões Anti-Máfia e Anti-Droga, visando aprimorar a preparação da segurança pública brasileira no combate ao crime organizado. A iniciativa rendeu frutos preciosos – foi a partir da volta dessas autoridades ao Brasil, que começaram a ser implantados os sistemas de inteligência policial, formadas forças-tarefas de combate ao crime organizado e implementadas legislações que permitiram o uso sistematizado da escuta autorizada, da barganha e da delação premiada – com resultados expressivos, que todos nós, hoje verificamos só de abrir o jornal diário…
Pois bem, na Academia Superior de Polícia italiana é que pude ouvir a seguinte constatação da polícia italiana: os três maiores fluxos de lavagem de dinheiro do crime organizado, em especial do tráfico de drogas, em todo o mundo, são, nessa ordem, Obras Públicas, Mineração e Lixo.
Com efeito, é impressionante a vinculação da corrupção, das fortunas sem causa, da criminalidade e do descontrole governamental, com essas três vertentes de atividades – que além de constituírem importante setor da economia de base de todas as nações, carregam um enorme potencial de impacto ambiental.
Dois exemplos, além do italiano, merecem destaque.
Nos EUA é emblemático o caso dos Lucchese, famiglia de mafiosos de New York e New Jersey. Ela dominava os aterros que atendiam a essas cidades até que o governo decidiu efetivamente combater o crime organizado, na administração Kennedy, a partir dos anos 60.
Após dura e sangrenta luta, a ação governamental levou a família Lucchese (ou o que sobrou dela), a migrar suas atividades clandestinas para uma estrutura legalizada – e ambientalmente correta, para não perder o mercado lícito da gestão de resíduos.
A moralização foi propiciada por conta da interação entre forças policiais, promotoria de justiça, receita e fiscalização ambiental.
Na Colômbia, a partir de Bogotá, o grande trabalho de moralização e combate ao cartel, também começou com o saneamento do meio – uma das lavanderias do esquema criminoso.
O governo colombiano interditou e encerrou a atividade dos lixões dominados pelo cartel do tráfico de drogas. Os lixões foram substituídos por aterros devidamente concessionados à iniciativa privada, sob controle de agência do governo.
Aliás, na América Latina, a relação estreita da falta de saneamento ambiental com o tráfico de drogas e a criminalidade organizada é uma constante.
Vários são os episódios de envolvimento do roubo de cargas e de veículos com depósitos de sucata, “desova” de corpos em aterros clandestinos e mesmo sistemas de contratação pública de aterros sanitários superfaturados (ou subfaturados) para “justificar” transferência ilícita de valores auferidos com os múltiplos negócios do crime organizado.
O famoso ditado “lixo no governo, governo no lixo”, tem relação justamente com a lavagem de dinheiro propiciada pela desorganização recorrente na fiscalização do que entra, do que sai e do que fica, em um depósito de lixo…
Portanto, o segredo está no esforço legal, do governo e sociedade, em sanear o meio, conferir adequada gestão aos resíduos sólidos urbanos, agir com transparência nos contratos e fiscalização e, com isso, jogar luz sobre um setor contaminado pela obscuridade da poluição.
Na Itália, o resultado do combate à poluição ambiental pari passu com o combate ao crime organizado, está resultando no saneamento do meio e redução expressiva da criminalidade.
A relação Lixo-Criminalidade também vigora no Brasil
Por óbvio que essa interação criminosa vige, também, no Brasil.
Está na hora, portanto, das autoridades brasileiras acordarem para o fenômeno.
É evidente, em nossos meios urbanos, o domínio de pontos de descarte clandestino de lixo, bota-foras de construção civil e descarte irregular de lixo tóxico, por agentes do crime organizado – não raro acobertados por funcionários públicos corruptos.
Essa teia de corrupção, por óbvio, intoxica a sociedade, inocula o lixo na estrutura governamental e faz governos atolarem no lixo.
Hora da Polícia Federal Brasileira, judiciário, Ministério Público, IBAMA e Receita Federal se inspirarem no que acontece hoje na Itália e, em conjunto com autoridades estaduais, combaterem o crime organizado simultâneamente ao saneamento do meio.
A diferença aqui, ao contrário da Itália, é que, no nosso caso, LEGISLAÇÃO NÃO FALTA…
No ramo de coleta e destinação de resíduos no Brasil, exceções de praxe à parte, a parte mais limpa do negócio, infelizmente, ainda é o lixo.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP) , sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Consultor ambiental, com consultorias prestadas ao Banco Mundial, IFC, PNUD, UNICRI, Caixa Econômica Federal, Ministério de Minas e Energia, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, DNIT, Governos Estaduais e municípios. É integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Grupo Técnico de Sustentabilidade e Gestão de Resíduos Sólidos da CNC e membro das Comissões de Direito Ambiental do IAB e de Infraestrutura da OAB/SP. Jornalista, é Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal, Editor da Revista Eletrônica DAZIBAO e editor do Blog The Eagle View.