LEI DE CRIMES AMBIENTAIS, FALTA DE LICENÇA E LICENCIAMENTOS PENDENTES

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Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro

Passados quase duas décadas de vigência da Lei federal n.º 9.605, denominada “Lei de Crimes Ambientais”, observamos que, apesar de sua enorme importância para o disciplinamento das atividades econômicas, pouco foi feito no campo da sua implementação pelo governo federal ou mesmo pelas administrações estaduais.

Na verdade, muitas dúvidas persistem quanto à eficácia da aplicação de regras constantes na lei, na maioria das vezes provocadas pelas próprias agências ambientais encarregadas da sua implementação.

Ninguém duvida dos benefícios da nova Lei Ambiental para o equilíbrio das atividades econômicas de impacto ambiental. A ameaça de uma sanção de ordem penal tem obrigado empresas, que antes descuidavam dos seus custos para com a proteção ambiental (em desfavor de outras que destinavam recursos para a área), a investir no setor, tornando o mercado, desta forma, mais competitivo.

Como leciona o velho mestre Gofredo da Silva Telles “numa sociedade onde há fracos e fortes, a liberdade excessiva escraviza, o direito liberta”. Os efeitos de uma condenação penal, em especial para a pessoa jurídica, ultrapassam a pena cominada diretamente em cada artigo para atingir restrições diretas à sua atividade, tais como a de proibição de contratar com o Poder Público por tempo determinado, entre outros estigmas que induzem grande reprovabilidade social.

Daí o cuidado que se deve ter na implementação do diploma legal.

No entanto, parte de nossos administradores públicos, ao invés de buscar a implementação da Lei Penal Ambiental, reprimindo ocorrências de contaminação criminosa, gestão temerária de resíduos e outras condutas de periculosidade real, passou a semear interpretações draconianas de tipos penais de menor potencial ofensivo constantes no diploma legal, ameaçando o mercado e produzindo a desconfiança dos empresários quanto à sua real utilidade.

Um exemplo dessa equivocada estratégia oficial é a interpretação perversa dada ao artigo 60 da Lei de Crimes Ambientais. O dispositivo, da forma como vem sendo aplicado, está atormentando empresas, empresários, administradores e técnicos, além de pôr na alça de mira do Ministério Público funcionários e autoridades encarregadas do cumprimento da lei.

Tipifica o artigo 60 da lei n.º 9.605 ser crime punível com detenção de um a seis meses e/ou multa “construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes”.

Com efeito, não só administradores zelosos, como juristas de renome têm afirmado que o delito em questão “é de mera conduta”, ou seja, que se consuma pela simples atividade, ou tão somente pelo comportamento do agente, independente do resultado. “Basta ser surpreendido funcionando total ou parcialmente sem licença, para incorrer no delito”, dizem.

Foi com base nesse mesmo raciocínio que a agência ambiental paulista (CETESB), no primeiro ano de vigência da Lei, expediu notificações a milhares de empresas que se encontravam ao desabrigo da licença de funcionamento, não diferenciando aquelas que estavam na expectativa de obter a licença, ou em situação irregular sanável.

A notificação expedida criou pânico na indústria paulista, pois empresas de renome viram-se sob risco de serem imputadas criminosas tão somente pelo fato de existirem.

O impasse institucional acabou por justificar a regulamentação transitória do Termo de Ajustamento de Conduta, visando elidir a aplicação do artigo 60 da lei penal às empresas que se enquadrassem nos moldes da MP 1.710/98.

Um equivoco de interpretação, portanto, acabou por justificar medida legal mais equivocada ainda, impondo transtornos e custos desnecessários ao setor privado e ao próprio Estado , que se viu premido a examinar propostas de adequação ambiental em prazos exíguos, muitas vezes incompatíveis com a natureza da atividade examinada.

O dilema interpretativo, no entanto, remanesce.
Delito formal ou não ?
Quanto mais claro for o entendimento do texto legal, mais efetiva será a aplicação da lei e menor a margem para contestação ou interpretações divergentes.

O cidadão, da mesma forma como em relação às obras de engenharia, deve sentir segurança e estabilidade na estrutura legal que rege sua vida, mormente quando o assunto é de natureza penal.

Posto isso, é de nosso entendimento que não poderia haver espaço para divagações quanto à natureza delitiva do ato de ampliar, reformar ou funcionar atividade potencialmente poluidora sem a devida licença.

Ocorre que o delito do artigo 60 não é formal, nem mesmo de mera conduta.

Primeiro porque não há, para a empresa, exigibilidade de conduta diversa à de se fazer existir. Seria o mesmo que obrigar o indivíduo a morrer por asfixia pelo fato de ter sido tipificado como delito o ato de respirar.

Não há alternativa para a vida senão a morte, e tal não pode ser exigido da atividade econômica cujo objeto é lícito.

Nesse sentido, o delito do artigo 60 da lei 9.605 não pode se equiparar a tipificações “de mera conduta” como o ato de dirigir veículos sem habilitação ou portar arma sem licença. O indivíduo que incorra em um desses delitos poderia ter optado por tomar um táxi ao invés de dirigir ou simplesmente ter deixado a arma em casa ao invés de portá-la; o mesmo não se pode fazer com as empresas.

O que seria “potencialmente poluente” para a lei penal ? É certo que o ato de poluir o ambiente põe em risco toda uma sociedade. Nesse sentido, é a degradação ambiental que se procura evitar com a edição de normas legais de restrição a atividades poluidoras.

No entanto, o risco de produzir degradação ambiental pode não estar presente no mero ato de ampliação, reforma ou funcionamento sem licença de uma empresa, ainda que considerada potencialmente poluidora.

Há uma sutileza legal que merece ser abordada: para a lei civil e administrativa, basta a potencialidade poluente intrínseca à atividade industrial para ocorrer a exigibilidade da licença; já para a lei penal, a conduta delitiva está vinculada ao risco real e iminente de ocorrer a poluição.
As diferentes sanções e a finalidade da sanção penal
A sanção administrativa ambiental objetiva corrigir distorções e punir (às vezes com grande rigor) os infratores, trazendo-os à tutela dos órgãos de fiscalização.

Nesse campo, pode o administrador, ao par da multa, conceder prazos e estabelecer condições, visando dar oportunidade ao infrator para corrigir a irregularidade. Pode, também, o administrador aplicar multas e sanções mais graves, até mesmo suspender as atividades do recalcitrante.

A sanção administrativa, assim, é de natureza disciplinar e preventiva, com efeitos fiscais e econômicos.

A sanção civil ambiental pode ser requerida por qualquer cidadão interessado, entidades civis e públicas ou pelo Ministério Público, sempre perante um órgão judiciário, que a decidirá por meio de amplo processo.

A sanção civil ambiental pode traduzir-se na reparação do dano causado ao meio ambiente pelo poluidor, ou na obrigação deste adotar medidas de correção, prevenção, ou mesmo abster-se de agir ou funcionar.

A responsabilidade civil do poluidor, como é notório, está vinculada ao fato ou ao risco do dano ambiental, independentemente de culpa.

A sanção civil, assim, mesmo quando açambarcar os chamados danos morais, terá sempre efeitos econômicos. Já a sanção penal será decidida judicialmente no bojo de um processo criminal, mediante denúncia formulada pelo Ministério Público.

Não é finalidade da sanção penal reparar o dano ou corrigir administrativamente a atitude do delinqüente. Por meio da pena o infrator expia sua culpa, recebe a reprovação social pelo seu ato.

A pena, portanto, é de natureza pública, retributiva, visa produzir efeitos didáticos para a comunidade e o próprio criminoso, prevenindo a sociedade, mesmo quando envolve obrigações pecuniárias.

O Estado, portanto, possui à sua disposição meios legais suficientes, de ordem administrativa e civil, para corrigir e ajustar condutas potencialmente lesivas ao meio ambiente, licenciadas ou não.

O Poder Público, deve, assim, recorrer à busca de uma sanção penal, somente quando e onde constatar efetiva periculosidade na conduta do infrator.
A conduta do agente como elemento do crime
O risco de degradação ambiental deve ser assumido pelo agente para que ocorra relevância penal na sua ação. No caso da atividade potencialmente poluente, a relevância penal pode não existir se o agente estiver adotando as medidas necessárias para prevenir os riscos de degradação, e buscando a adequação legal junto à administração.

Reza o artigo 225 da Constituição Federal, em seu parágrafo 3º, que os infratores, pessoas físicas ou jurídicas se sujeitarão a sanções penais (ao par das sanções administrativas e civis) quando adotarem condutas e atividades “consideradas lesivas ao meio ambiente”.

Esta lesividade portanto, deve ser real, sob pena de resumirem as sanções cabíveis ao campo administrativo e civil.

O tipo penal do artigo 60 da lei n.º 9.605 requer conduta dolosa do agente, ou seja, o infrator deve agir com dolo – vontade subjetiva de praticar o delito ou assunção voluntária de um risco real de provocar dano ambiental com a atividade não licenciada (visando, por exemplo, benefícios econômicos).

Há crime, ainda, quando o agente instala, reforma ou opera atividade ciente da incompatibilidade legal para com a atividade, circunstância que objetivamente impediria sua normalização.

Fora desses requisitos não haveria razão para adoção de medidas penais posto estar o caso restrito ao âmbito das infrações administrativas e das medidas civis.
Circunstâncias objetivas a serem analisadas
A maior parte das nossas indústrias estava de há muito em funcionamento quando da promulgação da Lei Penal Ambiental, em especial a chamada indústria pesada.

Várias delas encontravam-se razoavelmente adaptadas aos padrões formais de emissão e destinação de resíduos, porém defasadas tecnologicamente.

Outras indústrias, ao tempo da edição da Lei, surpreendidas pela fiscalização, buscavam atender às exigências do licenciamento ambiental, e, nesse sentido, viam-se submetidas ao jogo de paciência, imposto pela demorada e burocratizada ação dos órgãos responsáveis pela concessão da licença.

Uma grande parte das plantas em operação de nosso parque industrial, premidas, de um lado, pelas exigências dos órgãos ambientais e, de outro, pelo aperto no orçamento, buscavam (e ainda buscam) adequar o timing das mudanças e adaptações ao seu cronograma financeiro.

Outra parcela de nosso sucateado parque industrial, refém da competitividade internacional, da premência de resultados de produtividade e dos prazos de financiamento, tratou de pôr em funcionamento sua maquinaria recém-adquirida – via de regra menos poluidora e dentro de padrões de emissão mais restritivos que os nacionais, obviamente sem compatibilizar-se com a demorada ação de nossas agências ambientais, buscando a regularização da atividade a posteriori ou por meio de licenças provisórias (tais como a autorização provisória para “teste” do equipamento).

Em nenhum momento, essas empresas deixaram de objetivar uma finalidade lícita para sua atividade. Nenhuma delas tem por objetivo poluir, mas, sim, produzir…

Em todos esses casos, a distorção de comportamento tem origem no desaparelhamento dos órgãos ambientais, incapazes de responder à demanda de licenciamento nos prazos e condições de razoabilidade técnica e econômica, muito menos equipados e capacitados a transcender os estreitos caminhos do “comando e controle” para a “resolução do conflito” mediante ajustamento e conformação da atividade.

De há muito o fiscal ambiental deixou de sê-lo, para tornar-se um gestor ambiental. O problema é que a Administração ainda não se deu conta disso.

Muito menos os setores de persecução, como o Ministério Público (que não raro entende ser ele detentor do monopólio do ajustamento, quando seria a última trincheira a ser percorrida no caminho da resolução do conflito ambiental).

Ressalte-se que a razoabilidade e a eficiência constituem princípios da administração pública, embutidos no artigo 37 de nossa Constituição Federal.
Aliás, nossos governantes reconhecem a distorção, tanto que não raro dedicam-se a produzir obras necessárias e meritórias sem obter o devido licenciamento ambiental, muitas vezes buscando a adequação legal quando consumada a obra.

Alegam nossos administradores, em sua defesa, justamente a demora na obtenção da licença e a urgência dos cronogramas financeiros…

O Ministério Público, titular da ação penal, ao examinar as circunstâncias da pendência em que se envolveu a empresa face ao licenciamento, deverá, portanto, antes de redigir ou não a denúncia, atentar para os gaps burocráticos obstaculizadores da pronta regularização do empreendimento (alguns preexistentes à lei ambiental), compará-los aos fatores de ordem econômica e financeira (essenciais à sobrevivência da atividade em tela), para então identificar se o fato circunscreve-se às esferas administrativa e civil, ou descamba para o campo criminal.

O mesmo, em grau mais amplo, e sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, deverá fazer o magistrado, no âmbito da ação penal.
Conclusões
Assim, é imperativo que a mudança, que se pretende introduzir com a lei no comportamento de parcela de nosso setor produtivo, tenha uma contrapartida da Administração Pública Ambiental.

Essa contrapartida deve demonstrar ser injustificável a atitude do empresário ou administrador em pendência para com o licenciamento de sua atividade.

Ou seja, devem as agências ambientais buscar aprimorar seus quadros, enxugar seu patrimônio normativo, tornar mais ágeis e eficazes os procedimentos e desburocratizar os processos decisórios.

Não podemos admitir, por outro lado, que a norma penal do artigo 60, sirva de panacéia para os males da nossa fiscalização ineficiente.

Nossas autoridades judiciárias devem estar atentas para que a norma penal não seja aplicada como sucedâneo das sanções civis e administrativas.

Não pode a lei penal “compensar” a omissão do Poder Público do seu dever de implementar medidas civis e administrativas visando a correção de rumo nos licenciamentos em curso, interrompidos, atrasados ou mal resolvidos.

Quanto às empresas em situação delicada de verem-se surpreendidas no hiato entre licenças ou que estão operando parcial ou totalmente sem licença, devem passar à ofensiva, buscando o abrigo da Lei por meio do ajustamento de sua conduta à ela.

Nos termos do art. 5º da Lei Federal 7.347/85, qualquer interessado pode buscar ajustar sua conduta face ao órgão público competente, mediante o estabelecimento de termos e condições.

Vemos então que o termo de ajustamento não tem prazo de vigência. Pode processar-se junto à agência ambiental competente, ou, caso aí resida o impasse, junto ao órgão do Ministério Público sempre que necessário e possível adequar uma atividade lícita ao ordenamento territorial existente – visando o cumprimento da função social da propriedade. Trata-se de um direito público subjetivo.

No caso de verificar-se pouca receptividade desses órgãos, e havendo risco para a atividade, deve a empresa acessar a justiça, por via processual, pretendendo a manutenção precária de seu funcionamento, até a obtenção da licença, demonstrando primeiro técnica e legalmente, a viabilidade ambiental da atividade a descoberto, e, segundo, os fatores objetivos, técnicos e financeiros que a levaram ao descompasso com o processo administrativo do licenciamento.

De uma forma ou de outra, a mudança de atitude poderá elidir, na grande maioria dos casos, eventual imputação criminal, reduzindo a questão à desejável esfera das medidas administrativas e civis.

Quanto mais claro for o entendimento da lei, mais efetiva será sua aplicação e menor a margem para contestação ou interpretações divergentes.

 

afpp2Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.

 

 

 

 


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