Justiça eletrônica e exclusão digital

A digitalização de procedimentos judiciais no Brasil se faz no interesse da democracia e da Justiça. Porém é preciso salvaguardar os defasados e os idosos.

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Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro

 

Toda vez que leio alguma notícia sobre “modernização do processo eletrônico na Justiça”, imagino uma turba de engravatados e togados matando sem piedade pobres advogados idosos – e enxotando para fora do mercado os sobreviventes.

A cada alteração de software surgem levas de excluídos.

“Resetar para segregar”, deveria ser o lema dos dedicados ao “esporte” ciberburocrático.

Os mais velhos e a digitalização

Meu pai, Dr. Armando, advogado com sessenta e três anos de profissão, exemplo e referência de vida, do alto dos seus 87 anos, cumpre rotina disciplinada e diária no escritório. Lê compulsivamente, se atualiza e debate comigo e meus colegas todo e qualquer assunto. É nosso “google analógico”.

Por óbvio, não está obrigado a se informar sobre como inserir uma petição no sistema eletrônico e, vira e mexe, busca o apoio prestativo do pessoal do escritório para resolver os bugs usuais no acesso digital ás suas causas.

É um privilegiado, pois tem assessoria.

Já o Dr. Souza me preocupa.

Não o vejo há anos. Era mais velho que meu pai e igualmente ativo e lúcido. Trabalhava em um escritório pequeno, próximo à Praça da Sé e se orgulhava das petições que datilografava na sua máquina de escrever Underwood, com fita em duas cores.

O Dr. Souza contava com a assessoria de seu filho – um rapaz excelente, esforçado, porém “um pouco atrasado no raciocínio”. Era o Souza filho quem fazia o fórum, acompanhando as causas criminais – especialidade do escritório, e algumas outras causas relacionadas á locação.

Foi o Dr. Souza quem me fez ver a profundidade do amor á advocacia. Me dizia ele: “Fernando, o direito é maravilhoso, porque posso exercê-lo escrevendo num pedaço de papel de pão. Um habeas corpus, escrito no guardanapo, há de ser conhecido pelo magistrado!”

Pobre Dr. Souza e sua Underwood. Viraram peças de museu. O orgulhoso advogado é hoje mais um excluído tecnológico na profissão que ama.

Desgraçado amor à advocacia, triste justiça a que temos nos dias de hoje, onde uma petição datilografada em duas cores sequer seria protocolada…

Há que se ter salvaguardas de transição

Saudosismo? De forma alguma!

A digitalização de procedimentos judiciais no Brasil se faz no interesse da democracia e da Justiça. O controle social sobre os processos aumentou exponencialmente, a mobilidade foi fortalecida, com enorme redução de custos em viagens e deslocamentos. O acompanhamento dos processos deixou de ser privilégio de uma casta de operadores – pode ser exercido pelas partes e interessados, diretamente.

No entanto, é preciso salvaguardar os defasados e os idosos.

É preciso urdir salvaguardas analógicas e digitais de transição.

Me preocupo em especial com a falta de reconhecimento devido à dignidade da profissão, do direito e, principalmente, das prerrogativas das pessoas idosas.

A ausência de consideração com os elevados custos da adaptação tecnológica para milhares e milhares de pessoas que cuidam de interesses cidadãos (e todo interesse na tutela jurisdicional é um interesse cidadão), é um fato.

Fico sensibilizado com a facilidade com que defasados tecnologicamente acabam excluídos do processo de modernização e do mercado, por meio de uma simples resolução de tribunal.

O respeito ao idoso e o reconhecimento de sua importância no mundo de hoje, cada vez mais envelhecido, deveria ser pauta obrigatória nas atividades da jusburocracia digitalizada.

É preciso cessar e prevenir o massacre burocrático digital á cidadania.

O processo perverso e a perversão digital

A questão é mais ampla que a informática. De fato, sofremos um longo processo de tecno burocratização do processo judicial no Brasil.

O que devia ser mero instrumento, tornou-se um fim em si mesmo.

Aprendemos com os processualistas, na academia, que “direito é processo”. Percebemos hoje, no entanto, que a prolixidade atual do processo judiciário nos faz ver que “o processo é o único direito”.

Trataram os jusburocratas, nos últimos trinta anos, de destruir a instrumentalidade do processo por meio de novas e prolixas normas legais, resoluções evasivas e entendimentos jurisprudenciais escatológicos.

Não há saída. O processo judicial no Brasil não resolve conflitos, gerencia o tráfego das demandas.

Entre ativismos judiciais de toda ordem, entendimentos principiológicos subjetivos e segregações do conhecimento dos processos, a digitalização da justiça sempre corre o risco de ser utilizada apenas para controlar vias de acesso e segregar qualitativamente os que buscam alguma tutela. Só então, o judiciário trata de conhecer ou não a causa “sobrevivente”. Quanto menos tráfego, melhor.

Assim, o processo torna-se a única finalidade do processo…

Por meio da segregação processual das vias de acesso à justiça é que a jusburocracia ampliou seus próprios privilégios. No processo digital, porém, essa ampliação de privilégios pode ganhar escala geométrica.

A jusburocracia não interessa á Justiça – e a digitalização em bases democráticas deveria extirpá-la.

Obsolescência e diversidade digital são problema

A cada alteração de software e hardware, o processo eletrônico corre o risco de tornar-se mais uma ferramenta perversa nas mãos da jurisburocracia digital.

Em vários aspectos, a informatização da justiça limitou-se a… digitalizar o papel, e há quem use os “bugs” processuais para torturar impunemente o cidadão.

A ausência de salvaguardas analógicas, e vias de assecuração física para a busca dos direitos exclui meios básicos de conhecimento das causas pela magistratura.

Como visto, o problema é inter-relacionado. A burocratização e desumanização do judiciário decorre de uma involução política. No entanto, acaba influenciando perversamente a evolução digital do processo.

 

imagem do livro "Navegar é Preciso", de letramento digital

imagem do livro “Navegar é Preciso”, de letramento digital

 

Resetar para Segregar

A Constituição garante o acesso à Justiça – algo difícil de ser reinterpretado de forma restritiva. Assim, é inconstitucional a implementação do processo eletrônico e a digitalização dos cartórios, quando demandam adaptações custosas, maior pluralidade de programas e periódicas mudanças nos softwares sem qualquer salvaguarda analógica ou digital que permita uma gradual transição.

Deveria ser analisado pela ótica constitucional o descarte de profissionais incapacitados ou desavisados quanto à atualização de seu sistema de informática. Se o processo judicial não pode virar refém dos softwares adquiridos pela burocracia de estado, o profissional do direito também não deve ficar sujeito às resetadas periódicas efetuadas nos navegadores disponíveis no mercado, a menos que ocorra por conta de processos efetuados em escala internacional.

O caso recente da mudança ocorrida no Google Chrome – que deixou de rodar o plug-in Java, é um forte exemplo.

Usuários do sistema digital de acesso á justiça foram obrigados a mudar de navegador de internet e tiveram que adotar o Internet Explorer ou o Mozilla. Vários tribunais estaduais, por conta do conflito ChromeXJava, tornaram a alterar todo o sistema de peticionamento eletrônico e acesso à plataforma de processos.

Esse conflito já dura dois anos.

A adoção de um novo sistema foi inevitável. O fato, porém, já está causando profunda insegurança entre advogados – principalmente os idosos, e também entre aqueles poucos magistrados que acessam o sistema (sem a intermediação das assessorias ou funcionários de cartório capacitados…).

O fato é que bugs do processo digital são tão insuportáveis quanto os insuportáveis cartórios convencionais da justiça brasileira…

O pacto federativo assimétrico piora o quadro

Não bastassem as alterações periódicas, cada tribunal estadual brasileiro tem a liberdade de implantar o seu próprio sistema eletrônico.

Embora a Lei federal seja a mesma, o controle tecnológico do acesso à justiça varia de acordo com a conveniência digitalizada de cada tribunal.

Segundo a Ordem dos Advogados do Brasil, hoje há mais de 20 sistemas independentes de processo eletrônico em uso. Esses sistemas são periodicamente modernizados, atendendo cronogramas com prazos estreitos – visando a agilização da pauta da magistratura.

O campo para a arbitrariedade é enorme. E deveria se impor um disciplinamento ao fenômeno, pois a cidadania não pode ser reduzida ás infovias do judiciário.

O CNJ bem que tentou, tempos atrás, “uniformizar” os sistemas de tutela eletrônica jurisdicional em todo o país. A reação, porém, chegou a ser feroz. Os tribunais estaduais sentiram-se invadidos em suas prerrogativas e o caso foi parar nos escaninhos…

A questão é que a falta de solução do conflito afeta a prerrogativa dos advogados e a garantia de acesso á justiça pelo cidadão.

Conclusão

Voltando ao meu pai, o Dr. Armando que tanto se orgulha de sua completa autonomia e liberdade aos 87 anos… Ele continuará dependente dos funcionários do escritório para acessar suas causas pelas infovias.

Os velhos advogados porém, que não dispõe desta “mordomia”… como o Doutor Souza e seu filho esforçado, sucumbirão nas infovias nada cristãs do leviatã tecnológico que formata o judiciário brasileiro.

Algo para se pensar, ao digitar a próxima petição.

 

afpp18Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, das Comissões de Política Criminal e de Infraestrutura e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É membro do Conselho Consultivo da União Brasileira de Advocacia Ambiental, Vice-Presidente Jurídico da Associação Paulista de Imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.

 

 

 

 

 

 


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