GOVERNO AUTÔNOMO INDÍGENA É UMA TENDÊNCIA?
Autogoverno guarani instituído pelo governo da Bolívia consolida posição autonomista global para resolução de conflitos etnicos de quarta geração. Hora de saber o que é isso…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O governo boliviano anunciou o primeiro governo autônomo da etnia guarani, a ser conduzido mediante costumes ancestrais, sem afetar normas nacionais e regionais do país. O anúncio foi dado no dia 12 de setembro de 2016, em La Paz.
O anúncio foi recebido com satisfação por autonomistas envolvidos em conflitos similares em todo o mundo, e com preocupação por defensores das estruturas atuais de governos soberanos.
A notícia, no entanto, não surpreende a quem acompanha a evolução dos conflitos – e a forma de administrá-los, nos últimos cinquenta anos.
Autonomias e assimetrias – conflitos de 4ª geração
O mundo encontra-se assolado por conflitos assimétricos, denominados conflitos de quarta geração.
O termo “conflito de quarta geração” tem origem no conceito de “4GW” – guerra de quarta geração, extraído da doutrina militar israelense.
Em 1991, o professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, Martin van Creveld, publicou um livro intitulado “A transformação da guerra”. Van Creveld previu que no futuro as bases militares seriam substituídas por esconderijos e depósitos, e o controle da população se efetuaria mediante uma mistura de propaganda e terror. As forças regulares seriam transformadas em algo diferente – os principais sistemas de combate convencionais desapareceriam e as guerras se processariam por meio de conflitos multipolarizados de baixa intensidade – chamadas Guerras Assimétricas.
Ele, ao que tudo indica, não errou… Hoje os conflitos são absolutamente assimétricos e pautados pelos interesses e direitos difusos – que formam o objeto da 3a. geração de direitos da era moderna, sucedendo os direitos individuais e os direitos coletivos. Nesses conflitos, o interesse em causa mais visível consiste nas demandas por autonomias.
Conflitos por autonomias, no entanto, não são modernos. Alguns deles podem ter raízes milenares, podem ser herdados da história da civilização humana. Tornaram-se conflitos “de quarta geração” por conta da perspectiva dimensional com que passaram a ser analisados e tratados pela nova tecnologia da tutela dos interesses difusos no direito moderno – tecnologia jurídica que hoje aparelha os Estados Nacionais e organizações multilaterais para lidar com esses conflitos.
A primeira marca geracional dessa nova tutela dos interesses difusos é o reconhecimento da intrínseca conflituosidade desses interesses (algo similar a uma doença crônica no organismo humano). A segunda marca geracional é a identificação da assimetria nos conflitos por autonomias (grupos versus Estado versus outros grupos, etc…). A terceira marca é a submissão dessa assimetria à análise dos estudos de estratégia e história militar, por conta de suas características organizacionais paramilitares – no horizonte da violência potencial ou real dos conflitos (razão do numeral ordinatório “4ª”, na denominação do conflito, como já visto).
Reconhecidos como assimétricos… conflitos sócio-étnico-ambientais por autonomias demandam tratamento igualmente assimétrico, para sua administração e resolução.
Demandas por autonomias originam-se não apenas na reivindicação ou manutenção de autogovernos étnico-religiosos, mas, também, na tutela de movimentos sociais expressivos.
O mundo tornou-se, de fato, multipolar, e essa multipolaridade é caracterizada pelos mais variados vetores e demandas – econômicos, étnicos, ideológicos, criminosos, religiosos – até mesmo sexistas.
A preservação do direito de buscar refúgio em massa para outras terras, quando a destruição das condições de sobrevivência – pela guerra ou pelos desastres naturais, assim o determinam, é um exemplo de demanda por autonomia. Os conflitos do Estado com movimentos de sem teto nos centros urbanos (“occupy”, “homeless”. “sem teto”), ou a administração de conflitos em comunidades de moradias irregulares, desassistidas pelos aparelhos de estado, como no Rio de Janeiro, também integram demandas autonomistas. Conflitos territoriais entre curdos, turcos e iraquianos, na guerra contra o ISIS e o Talibã, e o episódio do Brexit – o desligamento da Inglaterra da União Europeia, também constituem exemplos.
O fato é que a resolução dos conflitos assimétricos dificilmente consegue processar-se sem ferir uma afirmação de soberania – nacional ou popular – e raramente deixam de nutrir facções paramilitares de cunho totalitário ou terrorista.
Povos indígenas latino-americanos – da comunhão à autonomia
Nas américas, há uma histórica demanda por autonomia das nações e povos indígenas, marcada pela violência da colonização ocorrida no continente. Essa demanda sempre foi latente, e guarda episódios históricos sangrentos. No entanto, foi renovada pela alteração das características de tutela e proteção dos interesses e direitos difusos, ditada aos estados do continente.
Os conflitos territoriais entre colonos, fazendeiros e indígenas, ocorrentes em todo o continente americano nos últimos quinhentos anos, mudou de tração. O caminho rumo à “pacificação” pela “comunhão e integração” das comunidades à “civilização” (e, em direção à inevitável extinção) foi sendo abandonado pelo caminho mais complexo e sofisticado da reivindicação fundiária e demarcação oficial de áreas de preservação visando manter de forma autônoma a forma organizada de vida das populações remanescentes.
Episódios como a exitosa liberação de quase 20% do território do Canadá para os índios norte-americanos e a desastrosa demarcação da reserva da Raposa Serra do Sol no Brasil, com expulsão de milhares de habitantes não índios já consolidados ali há décadas, são exemplos conflituosos recentes das últimas décadas, de que há uma mudança firme de rumos na resolução dos conflitos por autonomia indígena.
É nesse contexto, porém, que se deve entender o que ocorre na Bolívia, governada, hoje, aliás, por um índio.
O exemplo boliviano
Depois de um processo eleitoral iniciado em agosto e concluído no domingo (11/9), foram formados “os órgãos do Autogoverno da Autonomia Indígena Guarani Charagua Iyambae, a primeira na Bolívia e no mundo”, informou o diretor nacional de Autonomia Indígena Originária Campesina do Ministério de Autonomias, René Laime.
Há sete anos, os povos originários e quatro capitanias na região de Santa Cruz (leste) iniciaram a transição para uma nova forma de governo local que “recupere sua visão como povo e nação guaranis”, afirmou Laime.
O processo começou com a redação do estatuto regional de autonomias, conforme dispõe a Constituição boliviana, promulgada em 2009.
O marco constitucional da Bolívia garante aos “povos e nações Indígenas Originárias Camponesas (IOC)”, a possibilidade de formar a “Autonomia Indígena Originária Camponesa”, que consiste no autogoverno como exercício da livre determinação nos territórios, municípios, ou regiões que habitam.
Estatuído em moldes “bolivarianos”, porém, o sistema de autodeterminação não significa adoção de estruturas “autoritárias” de poder. Segundo o vice-ministro das Autonomias, Gonzalo Vargas, os povos indígenas adotam o “modelo comunitário” como sistema de organização, onde “existem direitos individuais que se subordinam à decisão do coletivo”.
O autogoverno Guarani está situado no município de Charagua, na fronteira com o Paraguai, e ocupa uma extensão de 74.000 km2, o maior da Bolívia. O governo autonomo conta com uma população superior a 30.000 habitantes.
O território Guarani instituído pela Bolívia, está incrustrado no centro nervoso de uma área permeada por conflitos assimétricos relacionados à luta pela demarcação de terras, no Paraguai e no Brasil.
Ele poderá representar, portanto, um bom exemplo ou um estopim para conflitos regionais.
Ideia foi cogitada no Brasil
A iniciativa boliviana já havia sido cogitada, há mais de duas décadas, por lideranças indígenas e operadores do direito no Brasil.
A primeira proposta similar foi inserida na Carta de Direitos dos Povos Indígenas do Brasil, apresentada pelo Comitê Indígena Brasil 500 Anos, na Aldeia Kari-Oca, sede da Conferência dos Povos Indígenas realizada no Forum Global – reunião da sociedade civil, durante a Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992 – ECO-92.
Esse importante documento foi subscrito por lideranças da estatura de Marcos Terena, Megaron Txucarramãe (Kaiapó), Idjarruri Karajá, Eliane Potiguara, Raoni Metuktire, Ailton Krenak, com o apoio técnico da Subcomissão de Meio Ambiente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – seccional paulista (OAB/SP) – que tive a honra de coordenar. Neste documento as lideranças indígenas apresentaram proposta de instituir um único território federal, unidade federativa autônoma, nos termos do artigo 18 da Constituição Federal, com estrutura administrativa própria – incluindo a organização de um conselho de povos indígenas, abrangendo territorialmente o caleidoscópio de todos os territórios demarcados no Brasil.
O documento teve o apoio de personalidades ligadas à questão, como o sertanista Henrique Sérgio Bünger (FUNAI), Humberto Adami (um expoente da Justiça Étnica e Ambiental no Brasil), José Vicente (hoje reitor da Universidade Zumbi dos Palmares), o promotor de justiça Herman Benjamin (hoje ministro do STJ), o magistrado aposentado Elio Figueiredo (que havia sido juiz em Rondônia), a professora Helita Barreiro Custódio, a advogada Eunice Paiva, a jovem advogada Adriana Nunes e o advogado José Eduardo Ramos Rodrigues, estes últimos os coordenadores da Câmara de Direitos Indígenas da OAB/SP.
Por óbvio o trabalho das lideranças indígenas atraiu a ira de antropólogos esquerdizóides, que viram nisso um “grito de independência” das tribos indígenas em relação à atividade proselitista da FUNAI e à militância desagregadora patrocinada por ONGs manjadas, como o CIMI. Atraiu, também, o ódio de estamentos nacionalistas, militares e ruralistas, que enxergaram no autonomismo proposto um forte questionamento á soberania nacional.
O documento, no entanto, tem importância histórica, pois inspirou a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas, firmada pela ONU em 2006.
Autonomia é o futuro
A Carta da ONU trata das autonomias tribais e não visa, por óbvio, resolver o problema apenas do continente americano. O problema das autonomias tribais é ainda mais sentido no continente africano e está latente também na Ásia.
De fato, a questão é pautada diariamente na Oceania, às voltas com os aborígenes cujo território forma a absoluta maioria do território australiano. Também é pauta no extremo norte da Europa, onde a autonomia é admitida e respeitada em relação às tribos Sami, da Laponia, identificados na Suécia, Noruega, Finlândia e Russia.
A Autonomia, portanto, é uma solução a ser trabalhada pelas estruturas jurídicas de tutela dos interesses difusos dos Estados Nacionais, como forma de alcançar estabilidade nos conflitos étnicos – como, aliás, no âmbito do direito internacional, já vem sendo admitido.
O entendimento das autoridades americanas, nos três continentes, sobre o fenômeno, ainda é bastante tosco – varia da visão telúrica do bom selvagem ao biocentrismo fascista, do racialismo esquerdizóide ao do marxismo desagregador, da verborragia evangelizadora ao equivocado alinhamento do autonomismo como antípoda da soberania dos Estados Nacionais.
Idiotas de todos os matizes pululam nesse campo, imaginando que o esperto índio não compreenda perfeitamente as tentativas de utilização de sua figura para satisfazer interesses inconfessáveis – como a vaidade pessoal liberticida de “otoridades” que procuram, promovem e produzem justiça ou a busca dos ongueiros e biocentristas por pretextos desagregadores que obstruam obras de infraestrutura a qualquer custo. O resultado, no entanto, buscado pelas lideranças indígenas amadurecidas e calejadas… é a simples e construtiva autonomia.
O fato é que fatores externos e internos, de ordem objetiva, obrigam todos os governos a adotar mecanismos de tutela de interesses difusos, conduzindo os atores à mesa de negociações para encontrar uma saída autonomista para os conflitos.
Vale a pena, portanto, ficarmos de olho no que ocorre no país vizinho da Bolívia.
Desprezando-se, necessariamente, o blá blá blá bolivariano de ocasião, a consolidação de um regime etnico-autonomista na Bolívia, com o autogoverno Guarani, tem sim, muito o que ensinar ao Brasil e ao mundo.
Fonte:
http://www.ambientelegal.com.br/um-retrato-uma-boa-historia/
http://istoe.com.br/etnia-guarani-forma-primeiro-governo-autonomo-indigena-da-bolivia/
http://www.theeagleview.com.br/2015/09/paramilitarismo-direito-e-conflitos-de.html?q=autonomia
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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