GESTÃO AMBIENTAL BRASILEIRA: A VERDADE INCONVENIENTE DO SISNAMA
Hora de adequar os meios, instrumentos e pessoal à finalidade da gestão ambiental no Brasil
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro *
Muito se fala sobre “metas”, “programas”, “políticas” e “implementações” em nosso país. No entanto, muito pouco se fala (e menos ainda se executa) quando o assunto é a estrutura da Administração do Estado Brasileiro – principalmente no que tange à Gestão Ambiental e à inserção institucional dos vetores de sustentabilidade nas ações governamentais.
Com efeito, o Brasil começou o século XXI carregando nas costas todos os vícios e equívocos culturais acumulados no século XX, dentre os quais se destacam a metaburocracia, o cartorialismo, a disputa micro-estrutural miserável, medíocre e anacrônica, entre “concursados” e “eleitos” (o falso dilema entre “investidura e mandato”), e o consequente desprestígio da cidadania.
Esses vícios históricos geram paternalismo e estimulam a ditadura de minorias – em especial as burocracias.
Na gestão ambiental esses vícios são evidentes. A tal ponto que foram sintomaticamente excluídos da abordagem analítica em todos os programas de governo apresentados nas últimas eleições para cargos executivos. O resultado da omissão política – atribuída a todos os seguimentos existentes em nossa democracia partidária – é que, nos últimos anos, ouve sensível evolução na rotina burocrática, administrativa e judiciária, prejudicando a eficácia legal da legislação protetiva do meio ambiente.
Por melhores que sejam as intenções e compromissos assumidos por um governante, nada poderá ser feito se este não priorizar a estrutura da instituição encarregada de implementar suas ações, mobilizar recursos e empregar meios, tendo em vista os objetivos a serem alcançados.
Para não nos dispersarmos em considerações difusas, vamos focar na estrutura da gestão ambiental hoje institucionalizada em nosso país – o SISNAMA, Sistema Nacional do Meio Ambiente.
Em que pese o SISNAMA vir sendo estruturado desde a promulgação da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, em 1981, este importante instrumento de controle territorial não foi inteiramente implementado. Mesmo assim, já está absolutamente tomado pelos vícios e equívocos culturais acima mencionados.
Quando dirijo meus olhos para o SISNAMA, me vem à mente a imagem da mula sem cabeça – figura de nosso folclore, que me parece inserida no nosso cotidiano institucional.
Com efeito, passadas mais de três décadas da sua instituição, o SISNAMA continua sem o seu Órgão Superior – a cabeça do sistema encarregada de assessorar o Presidente da República na formulação da política nacional e diretrizes governamentais para o meio ambiente.
Refiro-me ao Conselho de Governo – previsto na Lei de Política Nacional de Meio Ambiente.
De fato, há um Conselho de Governo instituído pela Lei que organiza o Gabinete da Presidência da República.
No entanto, a lei de regência do Conselho de Governo ignorou completamente a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente que já previa o órgão. Assim, não foi incluída no dispositivo sequer uma câmara específica ou mesmo qualquer procedimento de formulação de políticas ou de controle do sistema de gestão ambiental no referido Conselho. Uma “Câmara” foi instituída no governo Lula… com o único objetivo de alisar o enorme ego da então Ministra Marina Silva – porém, é uma ficção que ficou no papel.
Por conta disso, há clara desconexão entre as políticas ambientais adotadas pelo SISNAMA e as demais políticas do Governo Federal, relacionadas ao desenvolvimento econômico, ocupação territorial e desenvolvimento da infra-estrutura nacional.
Óbvio que isso se deve, justamente, à ausência de um mecanismo específico de resolução de conflitos e formulação de políticas públicas, que deveria estar de há muito embutida na Presidência da República, no Conselho de Governo, que é um órgão de coordenação interministerial.
O exemplo desse fracasso está nos resultados funestos da implementação das Legislações de Recursos Hídricos, Saneamento Básico e Resíduos Sólidos – absolutamente desconectadas com os sistemas de energia, transporte, ciência e tecnologia, saúde e desenvolvimento urbano, existentes no governo federal.
Os apagões no saneamento, na logística reversa, no prazo para as prefeituras se adequarem à disposição correta do lixo, no abastecimento de água, na instalação de hidrovias e na geração de energia nos últimos anos, faz prova cabal da desconexão e do fracasso.
Passando da cabeça (ausente) para o corpo (doente) do SISNAMA, observamos que o chamado Órgão Consultivo e Deliberativo – o Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA , por não ter a quem propor as políticas que elabora, acaba agindo de forma acéfala.
O CONAMA é um sistema nervoso sem cérebro. Por isso, não raro destoa da necessária harmonia que se espera na condução dos interesses de Estado e do governo.
É impressionante que não se perceba o óbvio: a organicidade do CONAMA beira o caos, tamanha a assimetria de sua composição.
Essa assimetria é geral, seja no que tange ao equilíbrio federativo, seja no que tange à relação técnico-jurídico-institucional dos seus membros, seja com referência à própria legitimidade ou representatividade de alguns de seus membros ou dos organismos ali representados.
O CONAMA conta hoje com aproximadamente 118 (CENTO E DEZOITO) membros. Não é por outro motivo que, sem um regimento rígido, ele se perde em reuniões intermináveis, completamente marcadas pelo espírito de assembléia estudantil.
Assim, a resolução dos conflitos que deveria equacionar e decidir, ocorre pelas bordas do Conselho – por meio de câmaras temáticas e grupos de trabalho formatados voluntariamente em plenário. No entanto, esses grupos não costumam guardar proporção técnica ou institucional em sua composição – que possa ser compatível com o assunto em pauta.
O resultado da distorção sistêmica é gerar cada vez mais burocracia e normas burocráticas que, por fim, demandam mais burocracia, sem efetivamente se observar a construção de uma ordem jurídico-ambiental estável e federada.
Esse fenômeno metaburocrático, é bem verdade, não atinge apenas o CONAMA. Vários outros órgãos reguladores inseridos na Administração Pública nacional sofrem do mesmo mal.
No entanto, o caso do CONAMA é preocupante, pois suas ações, por princípio, extrapolam os efeitos para os demais setores da vida nacional, ocasionando, não raro, distorções graves nos investimentos e no controle territorial do País.
Nos últimos dez anos, sob a batuta do eficiente Nilo Diniz, na Secretaria do Conselho, do hábil Ministro Carlos Minc, que dosava seu discurso com ações práticas concretas de ordem estruturante e sob uma rígida e bastante técnica condução da Ministra Izabella Teixeira, cuja agenda só não avança mais por conta da fraqueza notória da chefia do executivo federal, houve certa regressão nesse voluntarismo assembleísta do CONAMA.
Entretanto, é urgente uma revisão profunda da estrutura do órgão, tornando-o mais técnico, profissional, representativo e menos político e descompromissado com as estratégias de desenvolvimento nacional.
Da mesma forma que o Conselho, a agência ambiental brasileira, o IBAMA, órgão executor do SISNAMA, também necessita ser repaginado.
Há necessidade de especialização do seu corpo funcional, divisão de cargos e funções compatíveis com a interdisciplinaridade tão cara à gestão ambiental.
Não há como haver excelência quando, sob o manto de um cargo de carreira com a mesma e única denominação – “analista ambiental” – atuam engenheiros, jornalistas, biólogos, dentistas, advogados, arquitetos, sociólogos, médicos, filósofos, fisioterapeutas, etc… Isso para a execução de atividades funcionais que se extendem da fiscalização armada e repressão a infrações ambientais à análise técnica para fins de licenciamento e aprovação estudos de Avaliação de Impacto Ambiental de projetos complexos, em ambientes idem…
A cisão do órgão, no complicado período de gestão da messiânica ministra Marina Silva, constituiu, na minha opinião, um dos mais desastrosos equívocos de administração estratégica já adotados por um governo na área ambiental.
O governo federal separou o roto do rasgado, sem que até hoje consiga vislumbrar um tecido que articule as ações de fiscalização, fomento, licenciamento, gestão territorial, e administração de fluxos de compensações.
A cisão transformou unidades de conservação, empreendimentos e políticas públicas – bem como seus responsáveis, em verdadeiras bolinhas de ping-pong, tendo por raquetes os dois órgãos – IBAMA e ICMBio – duas faces de Janus – e seus jurisdicionados (escritórios regionais, conselhos gestores de unidades de conservação, departamentos… etc.).
Não bastasse o esquartejamento do IBAMA, ainda há a constante “perda de memória operacional” disseminada nos organismos do SISNAMA, gerando um enorme volume de atitudes subjetivas (leia-se: crises) por absoluta falta de referências objetivas.
Explico:
De fato, contrariamente às mais respeitáveis agências ambientais do mundo, nem o IBAMA, nem qualquer outra agência ambiental integrante do SISNAMA (incluso a nossa prestigiada CETESB, em São Paulo) possui acervo técnico publicado e disponibilizado, que possa ser consultado publicamente como forma de antecipar procedimentos e prevenir conflitos.
Não há publicação de jurisprudência administrativa que possa orientar a consulta de empreendedores e cidadãos interessados. Não existem notas técnicas publicadas regularmente, que orientem os próprios funcionários na resolução de conflitos similares quando da análise de licenças ambientais.
Raríssimos sãos os procedimentos públicos de consulta e manifestação para a formulação de normas e diretrizes técnicas.
Não há garantia de acesso de advogados e consultores aos procuradores encarregados dos pareceres jurídicos ou exames de causas na administração ambiental. De fato, salvo as conhecidas e honrosas exceções, é mais fácil um advogado ser recebido por um Ministro no Supremo Tribunal Federal que ter acesso a um procurador ou consultor jurídico aboletado em qualquer uma das várias procuradorias de órgãos ambientais vinculados ao SISNAMA.
Significa dizer: o Estado Democrático de Direito ainda não vigora na quase totalidade dos órgãos de gestão ambiental do País.
Ausentes os pressupostos estruturais, perenes tornam-se os vícios culturais.
É muito difícil arregimentar recursos humanos e financeiros para que o SISNAMA possa resolver seus próprios gargalos – em especial o mais importante deles: o licenciamento ambiental.
Absolutamente todos os órgãos do SISNAMA pecam pela falta de técnicos no setor de licenciamento ambiental.
Nos últimos anos, é verdade, vários foram os órgãos que focaram sua atuação na resolução desse problema – e podemos citar o próprio IBAMA, durante a gestão de Roberto Messias Franco, com os programas “Destrava IBAMA” I e II (o nome já diz tudo…).
No entanto, a questão de fundo é cultural e ideológica.
Há ainda, um dilema que precisa ser resolvido: ou se elimina no âmbito da Administração, a visão fascista, biocêntrica, que faz do licenciamento forma de entrave ao desenvolvimento econômico, ou continuaremos na idade das trevas, sem enxergar o instituto do licenciamento como suporte ao desenvolvimento econômico-social e vetor de planejamento.
O licenciamento ambiental é merecedor de uma enorme concentração de esforços. É preciso conferir ao instituto agilidade, acuidade e expertise no seu núcleo de atividade-fim, que é o de garantir sustentabilidade à economia nacional.
Políticos “de passagem”, burocratas carreiristas, militantes biocentristas, acadêmicos sem prática, diletantes, “iluminados” de todo tipo, e fiscais ativistas precisam, efetivamente, ser erradicados do sistema. A nocividade desses quadros compromete a condução do País no atendimento às enormes e complexas demandas de desenvolvimento, infra-estrutura, emprego e renda, controle territorial e preservação ambiental.
Esse fenômeno polui o ambiente institucional com subjetividades, ativismos e posturas ideológicas e retira a devida objetividade, impessoalidade e segurança jurídica ordenadas pela Constituição Federal.
Secas, falta de resposta às crises de abastecimento, apagão de infraestrutura, do saneamento básico, da logística reversa, e dos investimentos, constituem resultado direto desse descompasso.
Se há um ponto que deveria, portanto, constar no programa de qualquer governo sério, de qualquer candidato aos principais postos da política nacional, este deveria ser:
os meios precisam urgentemente justificar os fins.
É hora, portanto de assumirmos essa verdade inconveniente!
É hora de adequar meios, instrumentos e pessoal para reestruturar o Sistema Nacional do Meio Ambiente.
Mais do que nunca, é preciso estabelecer efetivo controle territorial e propiciar seguro suporte ao desenvolvimento sustentável de nossa Nação.
Artigo publicado originalmente em The Eagle View
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.