ESTRADAS DE RODAGEM: FAIXAS DE DOMÍNIO E CONFLITOS AMBIENTAIS
GOVERNO PRECISA DELIMITAR FAIXAS DE DOMÍNIO DE ESTRADAS PARA PREVENIR CONFLITOS AMBIENTAIS
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Logística é soberania
Dizia o presidente Washington Luís que “governar é construir estradas”. Ele estava certo, pois que não há economia ou integração que ocorra sem logística.
Nos dias de hoje, em que mobilidade é a palavra-chave, governar, mais que qualquer coisa, é permitir que pessoas e mercadorias circulem pelo território nacional, nele entrem e dele saiam – de acordo com regras legalmente estabelecidas.
Afinal, integração logística é fator de soberania.
Não é por outro motivo que idéias traçadas há décadas, visando conferir mobilidade à integração logística nacional, permanecem estoicamente nas agendas governamentais, independente das turbulências e mudanças ocorrentes no plano político do país.
Assim é que o Plano de Aceleração do Crescimento – PAC, lançado no governo Lula e, bem ou mal, ainda em execução no governo Dilma, nada mais é que uma versão envernizada do vetusto Plano Nacional de Viação – PNV, editado em 1973, no governo militar do General Garrastazu Médici.
Este plano era, e ainda é, de fundamental importância para o esforço brasileiro de integração nacional e houve mérito no governo Lula em procurar reabilitá-lo.
Se na década de 70 o PNV visava induzir ocupação territorial, hoje, 40 anos depois, inserido no PAC, o Plano visa atender à demanda de abastecimento das populações consolidadas, suportar o escoamento da produção e atender à livre circulação de bens e pessoas, isto num país já adensado e carente de profunda articulação logística.
Divórcio de políticas públicas
A consolidação de nossa malha rodoviária, portanto, é fator de sustentabilidade econômica e social, e deveria ser admitida como tal pelo Sistema Nacional do Meio Ambiente.
Porém, quando o assunto é integrar a política de transportes nacional com a política de meio ambiente implementada hoje em nosso território, o que ocorre é uma completa inversão de valores.
Dever-se–ia esperar reciprocidade, por exemplo, nas relações internas do governo federal, ao dispor territorialmente nossa malha viária e ao planejar, igualmente, a disposição de áreas protegidas e outras medidas de restrição ambiental, em nosso território.
Essa reciprocidade não deveria causar estranheza alguma. A propósito, vale lembrar o Princípio 4, inserido na Carta de Princípios da Organização das Nações Unidas, aprovada na Conferência do Rio Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 que reza que “Para alcançar o Desenvolvimento Sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste.”
No entanto, isso não ocorreu e ainda não ocorre e, portanto, é no licenciamento ambiental das obras lineares que reside o grande gargalo do PAC e outras obras de expansão da malha rodoviária.
Ainda que se procure mascarar em discursos ufanistas ou na apresentação de dados, o avanço das obras civis federais, o licenciamento ambiental continua sendo, em grande parte, responsável pelo retardo das obras de implantação do viário nacional, no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.
Licenciamento ambiental – entrave e solução
De fato, o licenciamento ambiental é o mais importante instrumento de implementação do Princípio da Prevenção – sem o qual inexiste controle territorial e planejamento.
O instituto do licenciamento ambiental é composto por duas atividades inerentes ao princípio da prevenção: o exercício da previsão de impactos e o exercício da prevenção face aos danos potenciais identificados.
O licenciamento ambiental pressupõe outros institutos do mesmo princípio, cuja atribuição é exclusivamente estatal e a ordem cronológica absolutamente clara: i. o inventário e mapeamento ecossistêmico do território, ii. o conseqüente planejamento governamental integrado e, por fim, iii. o ordenamento territorial.
Nesta claríssima regra de procedimentos sucessivos (diga-se, quase nunca implementados por nossos governos, gerando os mais diversos conflitos de descontrole territorial), não se pode tolerar que:
a) Obras rodoviárias rasguem o território nacional, desconhecendo peculiaridades ambientais e o ordenamento territorial pré-existente – vetores que condicionam qualquer projeto;
b) Gestores ambientais ousem dispor no território, áreas de restrição, ainda que para valorizar peculiaridades ecológicas importantes, desconhecendo a existência da malha rodoviária planejada ou pré-existente;
c) Ocorram demoras e atrasos nas autorizações e licenças ambientais, por mero entrave burocrático, ignorando o gestor responsável pelo licenciamento as demandas sociais e econômicas justificadoras da implantação e melhoria da malha logística em causa (fator integrante da chamada ecologia humana).
Jogo de xadrez
Essa disfunção cultural é o cerne dos problemas com a implantação de nossa malha rodoviária, senão vejamos:
A “moda” implantada na desastrosa gestão de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, durante o 1o. governo Lula, seguida sem muito raciocínio por vários estados de nossa Federação nos últimos anos, foi distribuir unidades de conservação por todo o território nacional, sem qualquer critério que não o da preocupação ocasional com peculiaridades, eventos midiáticos, crises ou especificidades locais, desconsiderando políticas públicas e governamentais de saneamento, energia, urbanização e transporte.
Ao se estabelecer uma unidade de conservação, porém, é patente que se deve considerar no mapa as estradas e ferrovias, inclusive faixas de domínio que as protege. Essa obviedade era absolutamente desconsiderada e como resultado sofremos conflitos de uso absolutamente previsíveis, e contornáveis com o simples uso do bom senso gerencial…
O surgimento de pequenos agrupamentos florestais nas áreas de proteção ambiental existentes no entorno de pontes que precisam ser refeitas, estradas que precisam ser duplicadas ou simplesmente asfaltadas, via de regra ocorre justamente devido à proteção adicional ocasionada pela própria obra de engenharia existente. Posto isso, jamais esses remanescentes deveriam obstaculizar autorização de supressão necessária à modernização ou mesmo simples manutenção da própria obra.
As faixas de domínio, que delimitam as obras lineares, por outro lado, de há muito deveriam, sob a ótica do gerenciamento ambiental, abarcar as áreas de extração de terra e os taludes, incluso a área de duplicação, permanecendo indenes de restrições ambientais impeditivas à sobrevivência das vias.
Todas essas questões, no entanto, assaltam cada metro, cada quilômetro, de quase todas as vias que estão sendo modernizadas ou implantadas no território nacional.
Por conta das indefinições cognitivas, conceituais e culturais, a novela do licenciamento ambiental progride como um jogo de xadrez, em que as peças “brancas” — da proteção ambiental, são manejadas pela burocracia para bloquear o avanço das peças “pretas” — do desenvolvimento rodoviário.
A menção a peças “brancas” não é gratuita, pois reveladora da mente viciada da burocracia ambiental – não raro auto identificada como “pura” naquele campo de batalha “cromático” e tida como possuidora de interesse “precedente” na regra do jogo… Posicionamento, portanto, duplamente preconceituoso.
O que é preciso ser feito:
O plano viário de 1973, reativado pelo governo federal, deveria ser respeitado como de interesse público e estratégico. Desta forma há de ser considerado na implementação da Política de Unidades de Conservação, cujo marco legal, datado de 2000, simplesmente omitiu a precedência devida à projeção da malha rodo-ferroviária nacional.
O resultado da omissão é o enorme volume de obstáculos ambientais, artificialmente erigidos, como que para impedir a implementação ou a modernização de estradas e ferrovias.
A interrupção de uma obra de interesse público, fato que deveria constituir exceção em face de interesses prioritários de ordem ambiental, a partir dessa cultura de precedências equivocadas tornou-se regra.
Antes de se debater a necessária correção conceitual – de constituir a infraestrutura nacional um direito do cidadão, um patrimônio público e um fator de interesse social a ser considerado de forma prevalente em sede de licenciamento ambiental – deve-se atentar que obras lineares dessa natureza, uma vez implantadas, possuem faixas de domínio sobre a quais, via de regra, ocorrem as obras de modernização e duplicação.
Nossa sugestão ao governo federal e aos governos estaduais, é que construam marcos legais claros, específicos, delimitando as faixas de domínio, conferindo a elas finalidade e funcionalidade, ao largo das vias implantadas e planejadas, estabelecendo claramente o interesse público e social prevalente não apenas nas obras que margeiam mas, também, sobre elas.
Sugerimos, também, que os órgãos ambientais e de tutela de índios e quilombolas, ao estabelecerem seus procedimentos de planejamento e delimitação territorial de áreas protegidas, respeitem as faixas de domínio e a malha de apoio logístico de interesse nacional – já constituídas, bem como as projetadas conforme as regras de autorização licença em vigor.
Outra medida urgente, cuja importância já ficou demonstrada no episódio do licenciamento dos trechos do Rodoanel Mário Covas, em São Paulo, é a introdução da Avaliação Ambiental Estratégica no planejamento e implantação de nossos sistemas viários, de forma a condicionar os atores envolvidos na gestão ambiental e licenciamento das obras, vinculando-os aos vetores ambientais já considerados no processo de planejamento, evitando impasses conceituais e conflitos de políticas a cada trecho de obra, duplicação ou simples asfaltamento a ser realizado.
Com ações firmes e pontuais, portanto, poderemos, enfim, destravar juridicamente nosso processo de articulação positiva das agendas da engenharia nacional e da proteção ambiental em nosso território.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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