Erro judiciário não é questão apenas de estatística, mas também de neurociência

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Por Rafa Santos*

“Como a palavra da testemunha ou da vítima em um reconhecimento de imagem acaba funcionando como fator único para justificar uma condenação ou pelo menos para definir a prisão preventiva, e com toda a carga de presunção de culpa que vem com essa prisão, lá na frente acaba-se redundando em uma injustiça. [Em] uma condenação com base em uma prova que não é confrontada com os demais elementos do processo.”

A frase é de Dora Cavalcanti, uma das fundadoras do Innocence Project Brasil, em entrevista à ConJur feita em 19 de agosto. Para os mais céticos — ou simplesmente conformados com o estado de coisas do sistema de justiça criminal brasileiro —, declarações do tipo podem soar abstratas, exageradas ou destoantes da realidade.

Reportagem da ConJur publicada neste domingo (29/8), no entanto, é mais um exemplo de que Dora fez um diagnóstico preciso da máquina estatal que investiga, julga e prende — não necessariamente nessa ordem.

No Paraná, um homem ficou quase quatro anos no cárcere, condenado por estupro. Mas em maio deste ano, quando passou a ser assistido pela Defensoria do estado, enfim foi feito o óbvio: como o sêmen do estuprador havia sido colhido e armazenado, procedeu-se à comparação entre o material genético guardado e o do homem até então esquecido no calabouço. Resultado: ele não é o autor do crime e, em revisão criminal, foi posto em liberdade. A palavra da vítima, que serviu de norte a todo o caso — da primeira abordagem policial à condenação definitiva —, mostrou que a bússola do sistema de Justiça precisa ser calibrada.

Um dos debates que o Innocence Project Brasil quer fomentar, aliás, diz respeito ao estudo da neurociência nas condenações. Para os fundadores do projeto, a problemática do reconhecimento, num futuro próximo, pode ser melhorada com a implementação de medidas baratas e simples, que diminuem essa incidência de reconhecimentos equivocados. O tema das falsas memórias é científico. As pessoas têm dificuldade de enxergar no outro uma diferença, explicam os criminalistas.

A versão brasileira do Innocence Project Brasil foi fundada por Dora em parceria com os advogados Rafael Tuchermann e Flávia Rahal. Desdobramento do projeto norte-americano, a iniciativa tem convivido com dificuldades típicas de nossa realidade, como a coleta e o armazenamento precário de vestígios de crimes — o caso do Paraná, no qual foi possível análise de material armazenado, é uma exceção.

Tuchermann lembra que essa dificuldade talvez tenha sido o primeiro grande desafio do projeto. “Nos Estados Unidos, o primeiro projeto até hoje só trabalha com casos que podem ser solucionados com provas de DNA. Isso no Brasil seria impossível, dada a fragilidade absurda na coleta de vestígios de crime e na manutenção adequada desses vestígios.”

Fundado em 2016, o projeto brasileiro integra o Innocence Network, rede que conta com 57 organizações espalhadas pelos Estados Unidos e outras 14 ao redor do mundo, e que, desde 1992, já conseguiu reverter a condenação de 350 inocentes. E foi vencedor do Prêmio Innovare 2019 na categoria “advocacia”.

Além de fomentar o debate sobre o erro judiciário, uma das bandeiras do projeto é normalizar a indenização a inocentes encarcerados. Para Flávia, esse é um debate em que todos os operadores de Justiça terão que enfrentar. “No Brasil temos ainda uma visão muito reativa a essa ideia, e esse é um obstáculo que teremos que enfrentar. É fundamental se falar em indenização, e o Estado olhar para dentro dele mesmo e entender que esses erros são comuns e cotidianos.”

Em entrevista à ConJur, o triunvirato que encabeça o Innocence Project Brasil falou das conquistas da iniciativa até aqui, da realidade do nosso sistema de Justiça e da necessidade de dar nome, sobrenome e visibilidade aos invisíveis. Enfim, trabalhar para que os inocentes não sejam apenas mais um número do sistema punitivo estatal.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

ConJur — Como surgiu a ideia de trazer o projeto para o Brasil
Dora Cavalcanti — O interesse pelo projeto surgiu em 2008. Eu namorei esse projeto nos Estados Unidos por um longo período. Em 2013 eu tive oportunidade de passar um ano como visitante no Innocence Project de San Diego. Foi assim que pude vivenciar o trabalho que eles fazem e entender como essa temática do erro judiciário da condenação de inocentes é trabalhada em mais de 55 projetos voltados ao tema nos EUA. Me familiarizei com os processos e passei a imaginar como poderíamos montar algo nesse sentido aqui no Brasil. O interesse do projeto surgiu da premissa de quando analisamos as garantias do processo penal, os regramentos, a importância da ampla defesa… Enfim, tudo isso que sempre defendemos na nossa advocacia e no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) da perspectiva do inocente. Daqueles casos em que, por uma série de fatores, o sistema falhou e um inocente foi condenado, você enxerga de uma maneira muito clara a importância de as regras serem respeitadas. E essa temática é muito pouco debatida aqui no Brasil. Ainda é. Nós temos três anos de estrada e muita coisa já mudou, mas acreditamos que esse tema e todas as questões que possam ser aprimoradas no Sistema de Justiça Criminal merece uma luz própria. Por isso fundamos o Innocence Project aqui no Brasil.

Rafael Tuchermann — A Elizabeth Loftus, que é uma das maiores especialistas em falsas memórias do mundo, costuma dizer que, após um acidente de avião, se faz uma investigação minuciosa para saber quais as razões desse acidente. E no caso do erro judiciário na condenação de um inocente deve ser feito a mesma coisa. É preciso rever do começo ao fim do processo. Essa visão sistemática, nós entendemos que faltava. Não existia uma organização com foco no erro judiciário. Nas causas do erro e de como preveni-los. Sempre atuamos com isso, mas de uma forma mais empírica, caso a caso, e não com uma visão temática e estrutural. Esse é o nosso desafio. Criarmos essa visão e difundirmos para todo o sistema, para que ele tenha mais meios de prevenir a ocorrência de erros.

ConJur — Quantos casos são tocados pela instituição atualmente? Quais os critérios para a entidade pegar um?
Rafael — Já recebemos por volta de 1.600 questionários. Desses, já ganhamos dois casos em definitivo. Em outros dois, já conseguimos soltar o condenado ainda sem uma decisão definitiva. E já atuamos também em mais dois casos e estudamos mais uma série.

Flávia Rahal — Escolhemos os casos via de regra pelo preenchimento do questionário disponível em nosso site. Uma pessoa em nome daquele que está preso preenche o questionário e fornece uma série de informações para gente ter um primeiro olhar daquela história. Recebemos alguns pedidos por cartas e por e-mails, mas o canal oficial é o nosso site. Não estamos ainda no momento como no projeto dos EUA, de visitar unidades prisionais para falar sobre o projeto, porque aí esse número iria crescer em progressão geométrica.

Mesmo estando em um movimento silencioso, já temos esse número grande de pedidos de ajuda. E acrescentando ao que a Dora e o Rafael já falaram, vale dizer que o que nos move é atender essas pessoas que estão desesperadas e enxergam no projeto a última alternativa dela e assim ajudar a aprimorar todo o sistema de Justiça. Cada caso que aceitamos tem toda uma história por trás de muita angústia. De alguém que se vê injustiçado e oprimido.

ConJur — Quais são as similaridades dos erros do Judiciário norte-americano e brasileiro? E quais as particularidades de cada sistema?
Dora Cavalcanti — Quando olhamos para os sistemas de fora, a sensação que se tem é que os erros teriam razões muito distintas. Na verdade, o erro judiciário é quase sempre um fenômeno multicausal, em que muitos fatores contribuem para que um inocente seja condenado em definitivo ao final de um processo. Só que nós temos notado uma semelhança muito grande nas principais causas. A primeira delas — e essa questão que aparece cada vez de forma mais presente — é o reconhecimento equivocado. Como a palavra da testemunha ou da vítima em um reconhecimento de imagem acaba funcionando como fator único para justificar uma condenação ou pelo menos para definir a prisão preventiva, e toda a carga de presunção de culpa que vem com essa prisão, lá na frente acaba-se redundando em uma injustiça. Uma condenação com base em uma prova que não é confrontada com os demais elementos do processo.

Outra razão de erro é o que se chama de “má conduta dos operadores de Direito”. É um termo bem vago em que temos que trabalhar ainda. Precisamos conversar sobre essa terminologia, mas a verdade é que no projeto da Califórnia você enxergava uma pessoa tão invisível como um brasileiro esquecido em uma cadeia pública nossa, e que pode estar lá por uma ação violenta da polícia ou por um olhar enviesado do Ministério Público, que partiu da figura do suspeito e só colocou no processo o que reforçava a tese condenatória. Outro fator que contribui para o erro é a falsa confissão ou testemunho. Desse, estamos um pouco mais distantes porque a figura do informante ainda não está tão presente na realidade forense do Brasil.

Também temos o trabalho de defesa mal feito. A defesa às vezes atua de forma acomodada, participa da audiência e não faz o resto do trabalho. Isso também acontece nos EUA. A figura do réu vulnerável diante do funcionamento massacrante do aparelho punitivo estatal aproxima as realidades do Brasil e dos Estados Unidos. E, por fim, temos também falhas em questões periciais.

Um objetivo nosso muito importante é tentar produzir dados do Brasil em parceria com as defensorias e com o CNJ para que tenhamos informações que reflitam a nossa realidade.

Rafael — A primeira diferença é a atuação da defesa ainda na fase de investigação. No Brasil isso ainda é muito incipiente. No geral — e temos muitas exceções louváveis — ,o advogado brasileiro fica mais passivo nessa parte, e a investigação é feita pela polícia com o MP presente. Reparamos que muitas vezes que, se um advogado mais diligente ou com um arsenal técnico mais desenvolvido fosse atrás no começo do caso, o suspeito não iria sequer ser processado e muitos menos acabar condenado. Essa proatividade na investigação, que até pelo sistema adversarial norte-americano é muito mais comum que aqui, ainda engatinha e causa muitos danos. E a própria cultura da descoberta da inocência como algo que tem que ser prestigiado. Lá nos EUA o Ministério Público respeita muito isso. Até mais que aqui.

Flávia — Tem também a questão do tamanho de pena, que nos Estados Unidos é uma coisa muito assustadora. Pessoas que ficaram presas 35, 20, 18 anos por um crime que não cometeram. No Brasil, temos isso em escala muito menor porque as nossas penas não chegam a esses absurdos, o que não exclui o fato de termos pessoas que já estão presas no Brasil há seis anos por crimes que não cometeram. Três anos… Qualquer tempo é suficiente para ser um divisor de águas não só na vida, mas em quem é aquela pessoa. Já percebemos que qualquer pessoa que passa por uma experiência dessa não sai a mesma pessoa de quando ela entrou, independentemente do tempo de prisão que ela tenha tido.

Outro ponto importante que nos diferencia dos EUA é a consciência da necessidade de indenização. No Brasil temos ainda uma visão muito reativa a essa ideia. E esse é um obstáculo que teremos que enfrentar. É fundamental se falar em indenização e o Estado olhar para dentro dele mesmo e entender que esses erros são comuns e cotidianos.

Rafael — Eu só gostaria de complementar com outro ponto importante que é a questão do DNA. Nos EUA, o primeiro projeto até hoje só trabalha com casos que podem ser solucionados com provas de DNA. Isso no Brasil seria impossível, dada a fragilidade absurda na coleta de vestígios de crime e na manutenção adequada desses vestígios. Só no projeto de Nova York já estamos chegando a 400 casos de inocência comprovada por DNA.

Flávia — Estamos com um caso atual em que a prova principal é o DNA e, para além do fato de que em muitos casos não houve coleta de material possível de ser analisada, ou até houve a coleta, mas ela não está devidamente condicionada para produzir uma contraprova, o que acontece é que a defesa aqui no Brasil, diferentemente dos EUA, não pode ter iniciativa de produzir essa prova e levar para o juiz por conta dela. Isso no Brasil necessariamente tem que ser por vias oficiais. Ao contrário dos EUA, no Brasil dependemos da iniciativa do magistrado, do MP ou da própria polícia para produzir essa prova. Temos uma limitação probatória gigantesca que tem a ver com a falta de cultura e de aceitação da defesa como proativa na fase investigativa.

ConJur — Dados do Depen de 2019 apontam que 65% dos presos brasileiros é formada por negros e pardos. Nosso sistema penal é influenciado pelo racismo estrutural?
Dora — Sem sobra de dúvida. Quando pensamos nos casos que nos chegam, o perfil dessas pessoas que estão ali em uma fila de esquecidos. Sem nenhuma chance porque o caso recebeu esse carimbo de trânsito em julgado. São pessoas que têm características muito próximas. São jovens negros e pardos muito parecidos e muito sujeitos a uma presunção de culpa. Por isso é tão importante dar rosto, nome e sobrenome a essas pessoas. Mostrar seus parentes, falar dos amigos que gostam dessa pessoa… Se não, será só mais um. E isso se reflete no erro judiciário, não apenas nas estatísticas, mas também em aspectos de neurociência.

Temos estudado bastante essa problemática do reconhecimento e estou muito confiante que no futuro próximo poderemos implementar mudanças baratas e simples que diminuam essa incidência de reconhecimentos equivocados. Esse tema das falsas memórias é científico. De como as pessoas têm dificuldade de enxergar no outro uma diferença.

Se a gente for pensar na nossa magistratura como majoritariamente branca e ainda egressa das faculdades de elite e confrontar isso com o perfil padrão do sujeito jovem, pardo, negro que está de boné, que usa brinco e tem tatuagem no corpo todo. E que é apresentado em um cenário induzido, são pessoas que ficam perdidas e não existe diferenciação.

Quando pensamos em como o racismo estrutural influencia no erro judiciário, enxergamos várias cargas de preconceito quando revisamos um projeto de trás para frente. Temos visto muitas vezes o tratamento desrespeitoso às testemunhas de defesa. E, novamente, se você tem um réu com algumas características, as testemunhas de defesa fazem parte daquela realidade que a pessoa vive. É o seu amigo, o seu vizinho, o seu patrão ou o seu colega de trabalho. Esse é um fenômeno muito triste. Essa percepção que essa pessoa poderia ir prestar depoimento apenas para tentar forjar um álibi ou contar uma mentira. As testemunhas de defesa são ameaçadas de falso testemunho e processadas mesmo que estejam contando a verdade. Dou exemplos: testemunhas tendo que explicar por que estavam na rua naquela hora da madrugada, por que foi para balada quando é noiva ou porque voltou a pé e não esperou o ônibus. Essa carga toda por trás do imaginário do olhar estatal sobre aquela realidade mostra uma diferenciação total da palavra do policial, do empresário ou de um expert para a o testemunho de uma pessoa normal que foi lá contar o que ela sabia. Isso está conectado com a forma como a nossa sociedade foi forjada e resulta em uma balança distorcida entre prova de defesa e prova de acusação, colaborando para ocorrência do erro.

ConJur — O que mudou de positivo do começo do projeto até aqui?
Flávia — O fato de o tema do erro judiciário estar na pauta. Isso tem aparecido como algo que é de interesse dos operadores de Direito. Assim como o reconhecimento das falhas do nosso sistema criminal ter mais espaço no debate público. Temas como falsas memórias. Temos um número de voluntários muito acima do que imaginamos. Com o envolvimento de nossos alunos, que é muito forte. Esse é um grande passo que estamos dando e que nos incentiva a seguir esse caminho.

Dora — A temática do erro judiciário precisa ser trabalhada com o engajamento de todos os operadores de Direito. Nos poucos casos em que tivemos sucesso ou que está em via de ter soluções finais positivas, tivemos posições marcantes como a de um promotor público que reconheceu a inocência de um réu e se colocou à disposição para trabalhar pela liberdade do réu. Para tentar repensar o que aconteceu e reconhecer o próprio erro. Hoje estou falando com um investigador que está me ajudando a entender o contexto maior que fez com que o nosso cliente fosse confundido com um assaltante. Um momento muito marcante para mim foi o depoimento de um desembargador que disse que a partir de um julgamento de um caso nosso passou a olhar com outros olhos para os casos que estavam em seu gabinete. Essa mobilização é fundamental e fica clara na perspectiva da própria imprensa, que tem dado voz à luta das famílias de pessoas que estão presas e são inocentes.

Flávia — Tivemos um caso em que o pedido de ajuda veio de um promotor. Ele pediu para que a gente fizesse uma revisão de um caso em que ele tinha trabalhado. Também temos tido muito apoio de peritos.

Rafael — Eu me atrevo a dizer que, se um promotor ou juiz que se sente impactado, a ponto para pedir a revisão de um processo em que ele atuou, nunca mais vai acusar ou julgar da mesma forma. Essa semente em cada um desses atores — inclusive advogados — é o ponto mais importante. Essa pessoa que percebe que qualquer um é suscetível a um erro irá passar essa lição para colegas e amigos. Nosso sentimento é que aparentemente o Judiciário estava esperando uma iniciativas como essa para fazer movimentos como a revitalização da revisão criminal e fazer com que ela seja encarada com o status que ela merece.

*Rafa Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.

 

Fonte: Conjur
Publicação Dazibao, 03/09/2020
Edição: Ana A. Alencar

 

 


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