DNA é ferramenta que aponta culpados, mas também inocentes
Por Marcos Camargo*
A ideia de dar efetividade e de ampliar os bancos de perfis genéticos no Brasil, contida no pacote de propostas enviado ao Congresso pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, é um importante aceno para o compromisso de empregar avanços tecnológicos no combate ao crime e, ao mesmo tempo, usá-los para evitar erros judiciais e prejuízo às vidas de pessoas erroneamente acusadas.
A confiança agregada à prova material, desprovida da subjetividade de provas testemunhais, é a tônica do uso do DNA nos processos criminais. Trata-se de um método compatível com a realidade das democracias mais desenvolvidas do mundo e já vem sendo usado no Brasil, ainda que timidamente, para apontar os verdadeiros autores de crimes como homicídios, feminicídios e estupros. Mas, também, para inocentar pessoas erroneamente acusadas por crimes que não cometeram.
Exemplo disso é o recente e histórico julgamento do RHC 125.096, em que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal absolveu, a partir de prova fundada na análise de material genético, Israel de Oliveira Pacheco, réu que havia sido condenado e preso pelos crimes de roubo e estupro com base unicamente no reconhecimento pessoal feito pela vítima em 2009.
Nesse caso, o laudo da perícia oficial do estado do Rio Grande do Sul mostrou que o DNA encontrado na cena do crime não pertencia a Israel. Anos mais tarde, em decorrência da implementação da Rede Integrada dos Bancos de Perfis Genéticos, os peritos criminais puderam cruzar o DNA até então não identificado, colhido na cena do crime, com outras amostras inseridas no banco de dados. Foi constatado, então, que o material pertencia a outro indivíduo, que já tinha envolvimento com casos de estupro.
A decisão do STF reforça a importância da análise de material genético como elemento determinante para a consecução da Justiça criminal. Mas é preciso destacar que a eficácia dessa ferramenta é diretamente proporcional à quantidade de perfis genéticos cadastrados nos bancos. Ou seja: quanto mais materiais genéticos forem inseridos, de acordo com os critérios estabelecidos em lei, mais criminosos poderão ser identificados e presos e mais inocentes erroneamente acusados poderão ser absolvidos.
A ausência de qualquer prova material produzida com isenção e equidistância das partes é motivo de polêmica em diversos casos que resultam em absolvição ou em condenações que não estão acima das dúvidas. Fizeram sucesso recentemente documentários veiculados pela Netflix como Making a Murderer, The Staircase e Inocente – uma história real de crime e injustiça. Eles têm em comum a ausência de provas materiais confiáveis para embasar as condenações, mantendo na cabeça do espectador a dúvida com relação ao acusado e reforçando que a condenação não é inquestionável.
O contexto que justifica a ampliação do uso do DNA no Brasil é a urgência de atacar a impunidade. A maioria dos 700 mil presos do país respondem por crimes decorrentes de flagrante — como o pequeno tráfico de drogas, roubos e furtos —, contudo, os crimes que exigem investigação e, portanto, possuem resolução mais complexa — como homicídios e estupros — seguem com baixa taxa de esclarecimento e, consequentemente, impunes.
A taxa de resolução dos casos de homicídio doloso, que depende de investigação para ser resolvido, fica entre 5% e 8%, de acordo com pesquisa feita em 2011 pela Associação Brasileira de Criminalística. Esse percentual é de 65% nos Estados Unidos, de 90% no Reino Unido e de 80% na França[1]. Soma-se a isso os alarmantes números da violência no país. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 foram registrados 59.907 estupros[2] e 63.895 homicídios.
A impunidade favorece a reincidência, que também é alta. Os dados mais recentes, referentes a 2015, estão em um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a pedido do Conselho Nacional de Justiça, que mostrou um índice de 24,4% de reincidência[3]. Ou seja, cerca de uma em cada quatro pessoas condenadas tornam a cometer crime no período de cinco anos após a extinção da pena anterior, como conceitua o Código Penal sobre reincidência[4].
A coleta de material biológico para obtenção de perfil genético é um modo racional e efetivo de atacar a impunidade e a reincidência. Ela já está prevista no artigo 9ºA da Lei 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) para condenados por crimes dolosos violentos e hediondos.
O avanço contido na proposta do ministro Sergio Moro — e também em alguns outros projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, entre eles o PLS 179/2018 — é justamente promover a ampliação dos tipos penais cobertos pela coleta do perfil genético, mediante procedimento sempre não invasivo e legal sob o ponto de vista de acordos internacionais (uma espécie de cotonete é encostada na parte interna da bochecha, o “suabe bucal”).
A aprovação desse tipo de proposta representaria a reversão do desestímulo que existe no Brasil há anos ao uso do DNA em processos criminais. Até novembro de 2018, apenas 20 laboratórios de todo o país participavam efetivamente da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos. E oito unidades da federação ainda eram desprovidas da estrutura necessária para a coleta desse material (Acre, Alagoas, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia, Sergipe e Tocantins).
Mesmo assim, a efetividade da ferramenta já foi comprovada. Com um número ainda pequeno de amostras cadastradas, até novembro de 2018, 635 identificações foram realizadas por meio da rede integrada, e as informações do banco de dados auxiliaram em outras 559 investigações policiais em andamento[5].
Finalmente, é importante registrar que a coleta de material genético encontra-se em perfeita harmonia com o ordenamento jurídico brasileiro, visto ser realizada por procedimento indolor e não invasivo, executado em poucos segundos e sem gerar incômodo físico ou qualquer lesão corporal à pessoa, de forma que não há violação à dignidade da pessoa humana. É realizada de forma passiva e sem ofender o direito de não autoincriminação, à similaridade das normas que autorizam que investigados sejam obrigados a se submeterem, de forma passiva, a procedimentos para produção de provas. Esses são os casos, por exemplo, de obrigar o réu a sujeitar-se ao seu reconhecimento por vítimas, à coleta de impressões digitais ou à produção de uma foto para registros policiais. Todas essas condutas são aceitas pela jurisprudência pátria e podem ser consideradas equivalentes à coleta de material genético feita a partir do “suabe bucal”.
O legislador, na Lei 12.037/09, ademais, teve o cuidado de garantir o sigilo dos dados inseridos no cadastro genético, permitindo apenas a inserção de regiões não codificantes do DNA. Ou seja: não são armazenados dados que revelem traços somáticos ou comportamentais.
Dessa forma, tendo em vista as inúmeras vantagens que o cadastro e a análise de material genético proporcionam às investigações penais, como a liberação de um inocente, além da legalidade do procedimento, a Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) defende que a ampliação desses bancos de dados corrobora os propósitos de construção de um ambiente social com menos impunidade e com um trabalho investigativo mais eficiente, além de proporcionar efetividade à Justiça criminal no país.
[1] Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Estratégia Nacional de Segurança Pública, Meta 2: A impunidade como alvo- Diagnóstico da investigação de homicídios do Brasil. Brasília, 2012. p. 22. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf
[2] A pesquisa supracitada adotou o conceito de reincidência previsto nos artigos 63 e 64, do Código Penal. De acordo com esses dispositivos, entende-se por reincidência o trânsito em julgado, em até cinco anos após o cumprimento ou extinção da pena, de sentença condenatória criminal de agente que comete novo crime, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação.
[3] http://cnj.jus.br/noticias/cnj/79883-um-em-cada-quatro-condenados-reincide-no-crime-aponta-pesquisa
[4] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2014 a 2017) – Edição Especial 2018. São Paulo, 2018. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/atividades/anuario
[5] MINISTÉRIO DA SEGURANÇA PÚBLICA. VIII Relatório da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG): dados estatísticos e resultados relativos a até 28 de maio de 2018. Brasília, Junho/2018. Disponível em: https://aspecgo.com.br/wp-content/uploads/2018/09/VIII-RELAT%C3%93RIO-DA-REDE-INTEGRADA-DE-BANCOS-DE-PERFIS-GEN%C3%89TICOS-RIBPG-final.pdf
*Marcos Camargo é presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF).
Fonte: Conjur