Da saúde ao sistema prisional, vivemos um Estado de Coisas Inconstitucional
O que há em comum entre o Estado de Coisas Inconstitucional[1] do sistema prisional[2], o surto de febre amarela[3] e a má qualidade do ensino[4] associada à precariedade da formação e à falta de valorização do quadro docente[5] em nosso país?
Aparentemente, segurança, saúde e educação são prioridades da sociedade brasileira, mas permanecem em crise, quase caóticos desde sempre. Extremo paradoxo esse: a primazia do senso comum e mesmo das opções de vinculação orçamentária que lhes amparam (seja na forma de pisos constitucionais, fundos específicos e receitas próprias) não é revelada na forma de um arranjo estável de política pública que qualifique progressiva e continuamente seus resultados.
Não são, portanto, pequenas crises, tampouco fragilidades episódicas as chacinas em presídios, o risco alarmante[6] de um surto de febre amarela que se espraie para regiões urbanas (em agravamento do quadro de contágio de diversas doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti) ou, ainda, a estagnada[7] constatação do baixíssimo desempenho médio dos estudantes brasileiros, na comparação com os seus colegas, oriundos de 72 países avaliados pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (PISA-OCDE).
Um desarranjo estrutural marca a condição de existência e operação dessas essenciais políticas públicas: não há eixo de planejamento para o longo prazo que vincule as sucessivas gestões de diferentes mandatários políticos e coordene, de fato, os diversos níveis da federação. A bem da verdade, há uma espécie de gestão orientada para apagar incêndios, de curto fôlego e de questionável custo-efetividade.
Interessante, aliás, o elevado grau de correlação entre os problemas que afetam essas áreas (sem que haja intersetorialidade e transversalidade nas correspondentes respostas), como bem lembrava a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, para quem “quando não se fazem escolas, falta dinheiro para presídios”[8]. Ainda segundo a ministra, é assombroso comparar o custo mensal do preso em face do custo anual do aluno, haja vista o fato de que “um preso no Brasil custa R$ 2,4 mil por mês e um estudante do ensino médio custa R$ 2,2 mil por ano”.
Numa correlação matemática imediata, um preso custa o equivalente a 13 alunos para o Estado brasileiro ou, numa associação um pouco mais sofisticada, o cuidado com três presos consome o custo de manutenção de toda uma sala de aula, com cerca de 40 alunos. Eis a razão pela qual a presidente do STF severamente lembrou o alerta histórico de Darcy Ribeiro, que, em 1982, avisara, ainda nas palavras de Cármen Lúcia, que, “se os governadores não construíssem escolas, em 20 anos faltaria dinheiro para construir presídios”. Trágica e lamentavelmente, a ministra conclui que “o fato se cumpriu. Estamos aqui reunidos diante de uma situação urgente, de um descaso feito lá atrás”.
Para além dessa oportuna retomada do iníquo custo-efetividade de presídios em face do investimento em escolas, a síntese mais acabada para qualquer dessas crises no sistema prisional, na saúde pública e na qualidade do ensino ofertado pelo Estado, é a de que há em todos eles um Estado de Coisas Inconstitucional na fragilidade e na descontinuidade das suas próprias políticas públicas. Tal analogia aqui é cabível, na medida em que esse conceito é sobre a omissão estrutural do Estado quanto ao arranjo e ao funcionamento efetivo da política pública, como podemos extrair da ementa da medida cautelar deferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, pelo Supremo Tribunal Federal em setembro de 2015:
“[Uma vez] presente [o] quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional[, o sistema educacional e o SUS] ser[em] caraterizado[s] como “estado de coisas inconstitucional”.
Ora, não há outra designação, senão a de Estado de Coisas Inconstitucional para o fato de que persistem alunos ignorantes, chacinas em prisões e surtos de doenças evitáveis há longas e vergonhosas décadas, mesmo no pós-Constituição de 1988.
De tanto a sociedade se acostumar com a incompetente formulação, execução e avaliação de tais políticas públicas, as crises podem até soar como “normais”, a despeito de reiteradas e, ao longo do tempo, agravadas. Mas o custo da “falência” da educação pública de qualidade, da saúde pública universal e integral e do sistema prisional brasileiro, como bem asseverado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347, é a “violação massiva e persistente de direitos fundamentais”.
Não há teto ou responsabilidade fiscal que evidenciem e enfrentem adequadamente essa permanente calamidade social, cujo status de caos financeiro no estado do Rio de Janeiro apenas antecipa a própria derrocada de todas as competências governamentais inscritas em nossa Constituição.
Neste 2017, talvez seja mesmo chegada a hora de falarmos às claras da falência estrutural das políticas públicas essenciais, antes que a calamidade social demonstre o quão proporcionalmente menor é o problema da calamidade financeira que muito debatemos à luz da Emenda 95 em 2016.
[1] Tal como suscitado nos autos da ADPF 347, cujo inteiro teor do acórdão que concedeu parcialmente a medida cautelar pretendida encontra-se disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665 (acesso em 30/1/2017).
[2] Uma boa síntese sobre o caráter reiterado e estrutural da crise penitenciária pode ser lida em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/01/30/sete-erros-do-sistema-prisional-brasileiro-que-pioram-a-crise-penitenciaria.htm (acesso em 30/1/2017).
[3] É interessante retomar a série histórica dos surtos de febre amarela para que tenhamos em mente a gravidade do quadro atual: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1853413-surto-de-febre-amarela-no-brasil-e-o-maior-de-serie-historica-desde-1980.shtml (acesso em 30/1/2017).
[4] Muito embora a má qualidade do ensino não seja medida apenas pelo IDEB, vale extrair reflexão a partir da sua perspectiva nacional ao longo dos biênios avaliativos iniciados desde 2005, o que indica resultados médios para o ensino médio inferiores à nota 4 em 10: http://g1.globo.com/educacao/noticia/ideb-no-ensino-medio-fica-abaixo-da-meta-nas-escolas-do-brasil.ghtml (acesso em 30/1/2017).
[5] Como o problema da qualidade do ensino depende fundamentalmente da qualidade dos professores, é dramática a constatação de que quase metade dos docentes brasileiros não possui formação específica para a disciplina que lecionam nas redes públicas e até mesmo privadas de ensino: http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/01/1852259-quase-50-dos-professores-nao-tem-formacao-na-materia-que-ensinam.shtml (acesso em 30/1/2017).
[6] O cenário, evidentemente, é de descontrole no trato da vacinação contra a febre amarela, como bem anotado em http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2017/01/29/interna_gerais,843234/surto-acende-alerta-para-descontrole-no-combate-a-febre-amarela.shtml (acesso em 30/1/2017).
[7] Estagnação de desempenho na comparação com o exame anterior divulgado em 2012, como se lê em http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/brasil-mantem-ultimas-colocacoes-no-pisa/ e http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/12/1838761-estagnado-brasil-fica-entre-os-piores-do-mundo-em-avaliacao-de-educacao.shtml (acesso em 30/1/2017).
[8] Como se pode ler em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83819-carmen-lucia-diz-que-preso-custa-13-vezes-mais-do-que-um-estudante-no-brasil (acesso em 30/1/2017).
*Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).