“CRIME E CASTIGO” NA LAMA DA SAMARCO
O Desastre do Rompimento da Barragem de Mariana chega ao juízo criminal da Justiça Federal
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Enfim, uma denúncia criminal
Um ano depois da tragédia que enlameou a quinta maior bacia do Brasil e deixou um rastro de morte e destruição, afetando até a costa oceanica, vinte e um integrantes da cúpula da mineradora Samarco e representantes das empresas Vale e BHP Billiton – controladoras da primeira, foram denunciados criminalmente pelo Ministério Público Federal.
O MPF ajuizou ação penal por homicídio qualificado, cometido com dolo eventual, pela morte das 19 pessoas em decorrência do rompimento da barragem de Fundão em Bento Rodrigues, subdistrito da cidade de Mariana, na Região Central de Minas.
A Justiça Pública imputa aos denunciados, também, crimes dolosos de inundação, desabamento, lesões corporais graves, dano à fauna, destruição de florestas, de bens tombados, crime qualificado de poluição e contra a administração ambiental.
Os delitos ambientais também foram imputados às empresas Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP Billiton Brasil. As corporações vão responder por nove tipos de crimes contra o meio ambiente, que envolvem crimes contra a fauna, a flora, crime de poluição, contra o ordenamento urbano e patrimônio cultural. Samarco e Vale ainda são acusadas de três crimes contra a administração ambiental. No total, as três empresas, juntas, vão responder por 12 tipos de crimes ambientais.
Entre os denunciados estão o então diretor-presidente da Samarco e membros do conselho de administração da empresa ( entre eles os representantes da BHP e Vale) a consultoria VogBR e um engenheiro – auditor (estes acusados de apresentação de laudo ambiental falso).
Crime e Castigo
No grande romance “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoiévski, o personagem principal, Raskólnikov, é um pobre atormentado com sonhos de grandeza que divide o mundo em pessoas que ele entende importarem à humanidade e a gente ordinária, que ele julga sem qualquer importância. Amparado por essa justificativa moral, Raskólnikov assassina uma velha agiota visando apropriar-se de seus pertences, e termina matando também a irmã da vítima, que aparece na cena do crime inadvertidamente. Consumido pela culpa, no entanto, termina confessando o delito e encontrando a redenção na pena.
Não há, ainda, um Raskólnikov arrependido no caso da tragédia de Mariana, que literalmente enlameou a quinta maior bacia hídrica do Brasil e, de quebra, também parte da costa brasileira. No entanto, de toda a tragédia, até agora remanescia um profundo sentimento de segregação entre “pessoas que importam” e… “a gente ordinária”, que não importa nas análises de risco gerencial, nos investimentos corporativos ou nas decisões pela contenção de gastos que afetam a segurança de atividades poluentes…
Sim… essa sensação de desprezo ao próximo, por não ser “interessante”, acompanhou todo o desenrolar da tragédia nos últimos doze meses…
No vai e vem da novela que já se estende por um ano, todos assistimos capítulos trágicos, para rir, chorar e vomitar. Talvez agora, com o processo crime em curso, haja um momento de júbilo pela expectativa de justiça e de conforto moral.
Pelo menos pode-se agora observar alguma efetividade na aplicação da lei para todos – seja, neste caso, para absolver ou para condenar.
Denúncia formalmente em ordem
A princípio, a denúncia do MPF contra Samarco, BHP, Vale, diretores, conselheiros e prestadores de serviço, está formalmente em ordem. Descreve as condutas, apresenta a materialidade delitiva e imputa a autoria de forma individuada.
A denúncia aponta momentos de escolhas assumidas em reuniões e comunicados do conselho de administração da Samarco, definindo contenção de gastos e distribuição de lucros com ciência plena dos riscos e da fragilidade do andamento das obras de correção do sistema de contenção dos rejeitos.
Os subscritores da ação penal não são novatos em casos complexos.
Os procuradores denunciantes ganharam experiência em casos similares e de relativa magnitude, ocorridos nos últimos quinze anos entre os estados de Minas, Rio e Espírito Santo.
O Procurador Eduardo Santos e o Procurador José Adércio trabalharam no caso do rompimento da barragem da empresa Cataguazes de Papel, considerado até então o maior caso de poluição em rios já ocorrida.
A equipe do Ministério Público Federal parece convicta da necessidade de efetivar a legislação ambiental penal, no país… demonstrando ser ela aplicável não apenas contra os pequenos mas, também, contra os grandes poluidores.
A culpabilidade no ambiente corporativo
A ação deverá sofrer críticas do corpo de advogados que atuará na defesa dos envolvidos, e a munição de razões deverá ser farta.
De fato, é grande a dificuldade de provar a conduta criminosa de grandes empresas e seus diretores. A manifestação de vontade no âmbito corporativo é algo tão sutil quanto a omissão.
Os momentos intelectivo e volitivo surgem entre rotinas gerenciais, análises de risco financeiro, relatórios e decisões administrativas aparentemente desconectadas com o resultado.
Nas corporações, a vontade da pessoa jurídica – aparentemente despida de sentimentos, se manifesta pela decisão do corpo dirigente executivo, na esfera regulamentar de suas atribuições. Pode também se expressar coletivamente – em uma reunião, por deliberação e voto dos diretores, acionistas, conselheiros e gerentes, nos conselhos diretores, de gestão, comitês setoriais ou conselhos de administração.
O fenômeno da manifestação da vontade do ente jurídico por meio do seu órgão, foi denominado por Pontes de Miranda como “presentação”.
Dizia o grande mestre e advogado: “onde há órgão não há representação, há presentação”.
Há uma sutileza na presentação, que define toda a questão no campo penal da conduta dolosa da pessoa jurídica. Na presentação a entidade social aponta a pessoa ou sistema que irá incorporar e manifestar sua vontade. Essa pessoa ou órgão irá presentá-la, estar presente nos negócios jurídicos e perante terceiros. Trata-se de um fenômeno “espiritualista” juridicamente fundamentado, sem o qual, não há como compreender o funcionamento do circuito econômico, tal como ele é.
A abstração é a razão de ser da arte que é o direito, e é por meio dela que se produzem os mais significativos impactos materiais econômicos e sobre o meio ambiente.
A presentação, no entanto, é pouco debatida e absolutamente ignorada no direito brasileiro. Talvez por isso haja tanta dificuldade para se evoluir na apuração de responsabilidades nos ambientes corporativos – especialmente na formação do juízo de culpa.
Identificado o fenômeno, a aferição da responsabilidade da corporação encontra-se moldada às próprias características orgânicas, estruturais e de gestão desta entidade, e envolve o juízo de valor nela praticado, fisiologicamente. Só então se evolui para discriminar com segurança as responsabilidades individuais das pessoas naturais, segregando as condutas no ambiente corporativo.
Essa segregação é fundamental na apuração e repressão aos crimes e infrações de natureza econômica – como é o caso dos delitos contra o meio ambiente.
O juízo de culpabilidade irá medir o grau de reprovabilidade da conduta, aferindo a exigência de atitudes diversas da encetada pela pessoa jurídica – perfeitamente possíveis nas circunstâncias apresentadas e condições econômicas, orgânicas, existentes.
Há, portanto, necessidade de buscar um liame entre a atitude dos responsáveis legais e o ato atribuído à entidade, não só para definir a responsabilidade do ente como também a responsabilidade dos agentes naturais que o compõem.
Essa busca também é importante para que se possa inocentar sócios minoritários e dirigentes sem relação com a infração cometida.
Foi o que se observou na construção do iter lógico da denúncia apresentada pelos procuradores. E será nesse campo que a batalha judicial será travada.
Decisões corporativas constituem prova
O MPF, em sua denúncia, apontou momentos em que a ciência da situação complicada das barragens não impediu o Conselho da Samarco de adotar medidas diversas, voltadas à satisfação de outros encargos menos importantes.
A denúncia descreve reuniões do conselho diretor da mineradora, onde foram informadas falhas, “não conformidades” na barragem de Fundão, sendo que apenas 37% das correções haviam sido concluídas.
Segundo a denúncia do MPF, embora permanecesse inerte em relação à adoção de medidas de segurança que evitariam o rompimento da barragem de Fundão e suas trágicas consequências, o órgão de direção da Samarco aprovou distribuição de dividendos adicionais no valor de R$ 2.104.160.811,88 (dois bilhões, cento e quatro milhões, cento e sessenta mil, oitocentos e onze reais e oitenta e oito centavos) entre seus acionistas. Lançou, ainda, advertência de que era necessário “reduzir custos”.
No corpo da denúncia, os procuradores afirmam que “reduzir custos é estratégia legítima de toda empresa e de seus gestores, mas à custa da segurança e dos sabidos riscos de que poderia levar a gravíssimas consequências, é uma atitude reprovável e criminosa”.
Procedimentos como os acima descritos, é óbvio, serão contestados ao seu tempo pela defesa das mineradoras e diretores implicados.
No entanto, a forma como relacionadas as decisões com as consequências revela a adoção de técnica de aferição de condutas da pessoa jurídica a partir da análise do seu fluxo decisório corporativo. Algo ainda incipiente nas investigações de delitos econômicos no Brasil, e objeto de conflitos doutrinários de interpretação, não apenas no caso ambiental em questão mas, também, nos processos de investigação de delitos envolvendo corrupção e abuso de poder econômico, em evidência na mídia brasileira.
Um caso para ser seguido de perto
O fato é que a magnitude do desastre, o porte das empresas envolvidas e a extensão dos danos no território brasileiro, transforma esse processo criminal promovido pelo MPF em caso digno de ver-se acompanhado com lupa, tamanho o aprendizado para profissionais do direito, organismos de regulação e gestores privados e governamentais.
Montado o cenário no campo da justiça penal, é justo acompanhar com interesse crítico os próximos lances…
Para quem tiver interesse, segue o link da mencionada Denúncia do MPF:
Ação Penal – Rompimento da Barragem da Samarco – Denúncia do Ministério Público Federal
Sobre responsabilidade penal ambiental corporativa, segue leitura recomendada como referência:
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal, Infraestrutura e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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