CONSEGUIRAM! A MEDIOCRIDADE VENCEU!
Niéden Guidon deixa Fumdham e Parque Serra da Capivara fecha as portas
“Na Era da Mediocridade, onde se vê a consagração dos idiotas e a supremacia dos cretinos, a busca pela verdade por aqueles que se recusam a fazer parte do time supra- citado requer não apenas autonomia intelectual, percepção e sensibilidade, essas coisas todas que fazem a pessoa enxergar os fatos como eles são. Requer além de tudo coragem para dizê-la. Coragem é um pressuposto para fazer de alguém um lutador, e na tal Era da Mediocridade dizer a verdade é entrar numa luta. O que deveria ser motivo de aplauso é encarado pela mentalidade predominante como uma afronta, um escárnio.” (Paulo Eduardo Martins)
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Conheci Niéden Guidon no início dos anos 90, quando assumi a coordenação da Subcomissão de Meio Ambiente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil. Fiquei de pronto admirado pela grandiosidade do seu trabalho e surpreendido com a montanha de entraves e dificuldades com as quais ela convivia diariamente, para manter de pé o projeto de identificação e manutenção do patrimônio arqueológico da Serra da Capivara, em pleno sertão do Piauí.
Niéden era, e é, sobretudo, uma lutadora corajosa.
Uma vida dedicada à busca da origem da humanidade no continente americano
Formada em História Natural pela USP, Niéden trabalhava no grande Museu Paulista (conhecido como Museu do Ipiranga), quando, em 1963, soube da existência de um sítio arqueológico localizado em São Raimundo Nonato, cerca de 525 km de distância de Teresina, no Piauí. A descoberta foi casual, durante uma exposição de pinturas rupestres de Minas Gerais no Museu Paulista. Niéden conheceu um morador da pequena cidade de São Raimundo Nonato, que lhe informou existir ali pinturas semelhantes.
Eram tempos complexos… de modo que, após a volta do presidencialismo, um golpe militar, dois presidentes, duas juntas militares e cinco atos institucionais, somente em 1973 Niéden conseguiu visitar o Piauí. Nesse período, ela tratou de se exilar, por 8 anos, lecionando na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris – ocasião em que Doutorou-se em arqueologia pré-histórica pela Sorbonne e concluiu especialização pela Université de Paris I.
Foi amor à primeira vista. Ali, no sertão do Piauí, Niéden compreendeu qual era a sua missão de vida – dedicar-se à pesquisa de um dos mais importantes sítios arqueológicos do continente americano.
A pesquisa exige paciência, despojamento, sacerdócio, fé e determinação. O pesquisador de história natural é um indivíduo vocacionado a se fixar por meses, anos, décadas, em um determinado sítio arqueológico, ou vinculado a determinada pesquisa e exploração, até encontrar todas as respostas que tragam para a atualidade o retrato fiel da civilização ou ecossistema pesquisado.
Assim, a partir de 1973, Niéden articulou e integrou a Missão Arqueológica Franco-Brasileira, concentrando no Piauí seus trabalhos, que culminaram na criação do Parque Nacional Serra da Capivara. Tornou-se a diretora do parque e Diretora Presidente da Fundação Museu do Homem Americano.
Os achados arqueológicos de Niéden Guidon possibilitaram à ciência constatar que o povoamento do continente americano ocorreu muito antes do que se acreditava.
Até então, se tinha como certo que os primeiros humanos chegaram no continente há 15.000 anos, no período glacial. Porém, Niéde Guidon extraiu dos sítios arqueológicos da Serra da Capivara artefatos que datam de até 58.000 anos atrás.
Da grande discussão que se seguiu entre os pesquisadores quanto aos objetos, deu-se quanto ao que podia ser considerado “artefato” (produto do trabalho humano) e “geofatos” (objetos que se formaram por ação de forças naturais). Antropólogos das escolas norte-americana e europeia, até hoje se dividem quanto às evidências. No entanto, os achados continuaram.
Em 2006 foram divulgados os resultados das pesquisas de Eric Boeda, da Université de Paris, e Emílio Fogaça, da Universidade Católica de Goiás, afirmando que os artefatos achados por Niéden em 1978, no Boqueirão da Pedra Furada – São Raimundo Nonato, foram realmente feitas por seres humanos, e possuem idade entre 33 mil e 58 mil anos. A pesquisa destruiu a teoria científica do arqueólogo Clóvis First, que até então não reconhecia a presença do ser humano nas américas antes da grande migração pelo estreito de Bhering, há mais ou menos 15.000 anos.
Niéde formou uma equipe de primeira linha, que foi orgulho da arqueologia nacional, visando reescrever a história demográfica do homem. Embora haja ainda lacunas, as evidências arqueológicas – consistentes em mais de mil e trezentas descobertas e centenas de fósseis, têm reforçado a hipótese de Niéden.
A luta contra o obscurantismo e a burocracia medíocre
Niéden conversava comigo, durante meu período à frente do órgão ambiental da OAB paulista, com certa frequência. Suas dúvidas e angústias eram circunscritas ao vandalismo desenfreado, à absoluta falta de atenção dos governos federal e estadual quanto à deterioração do parque e, principalmente, aos problemas burocráticos crescentes quanto à sua própria relação institucional. Ela falava com um sotaque muito peculiar e, portanto, era fácil identificá-la nas chamadas. Quando deixei a direção do órgão, na OAB, nossas conversas cessaram. No entanto sempre acompanhei de longe o seu trabalho e sua luta.
O advento da nova burocracia ambiental, no entanto, já no final dos anos 90, ao invéz de melhorar a relação entre governos e pesquisa científica, pioraram o quadro para Niéden. Junto com o discurso pretensamente natureba, vieram o biocentrismo fascistóide, a arrogância dos que se acham detentores do monopólio das virtudes ambientais e a desconfiança obscurantista do que seja pesquisa científica.
Restrições começaram a chover sobre o trabalho arquológico.
Um organismo até então restrito às questões que lhe afetariam no campo judiciário, resolveu se arvorar a mentor da arqueologia nacional, campeão da pesquisa acadêmica e julgador do que era ou não válido quanto a metodologias científicas no campo da história natural e da gestão ambiental: o Ministério Público. Um organismo que deveria apoiar a ciência, tornou-se a reedição de Tomás de Torquemada, o inquisidor-geral de origem Sefardita dos reinos de Castela e Aragão no século XV, “confessor” da rainha Isabel a Católica. Nuvens negras cobriram o que seria a luz sobre a história do homem americano no estado do Piauí.
A nova inquisição foi acompanhada com entusiasmo pela nova burocracia biocentrista instalada nos órgãos ambientais federais, a partir da primeira gestão de Sarney Filho no Ministério do Meio Ambiente, no Governo FHC. Essa burocracia militante recrudesceu nos anos de Marina Silva e no período posterior – somando “naturebice tosca” e “esquerdismo contextualizado” à “incompetência crônica” – marcas da gestão ambiental petista no Brasil.
Criado no período bicudinho de Marina Silva, o ICMBio tornou-se o grande algoz de Niéden Guidon. Outro algoz de qualquer iniciativa, seja ela qual for… é o Tribunal de Contas da União, incapaz de separar o joio do trigo quando o assunto é verba federal e contratos complexos.
Assim, após muito batalharem para que nada mais ocorresse de positivo na Serra da Capivara, os burocratas unidos aos “heróis da negatividade” conseguiram o grande feito: Niéden Guidon comunicou à UNESCO, na terça-feira do dia 16 de agosto de 2016, que deixará a presidência da Fundação Museu do Homem Americano, no Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, Sul do Piauí.
A burocracia e a política prestam seu desserviço ao Brasil
A mediocridade conseguiu o grande feito. Com mais de 130 mil hectares, abrangendo quatro municípios no interior do Estado, o parque não tem mais recursos para se manter e fechará as portas.
De acordo com a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), responsável pela manutenção do parque desde o ano de 2014, os cofres da instituição não recebem recursos suficientes para manter o patrimônio.
A pedra de cal partiu da Justiça Federal , que devolveu à União Federal R$ 4 milhões, que anteriormente havia bloqueado para manutenção do parque, tudo em função do ICMBIO ter enrolado, enrolado, enrolado e… não ter assinado a cogestão com a FUMDHAM.
O bloqueio havia sido requerido pela OAB do Piauí, e decidido por sentença de primeira instância pela Justiça Federal.
A drenagem das verbas já vinha ocorrendo, por outro lado, por conta de uma decisão do Tribunal de Contas da União – acórdão 1004, que impedira anteriormente o repasse de recursos pelo mesmo motivo – ausência de contrato com o ICMBio.
Assim, a partir de hoje desta quarta-feira (17), os turistas não poderão mais entrar no parque. Os condutores de visitantes que sobrevivem com os recursos provenientes do trabalho no parque ficarão impedidos de acompanhar os visitantes.
É o capítulo funesto de uma novela previsível. Com a dificuldade de zelar pela infraestrutura e pesquisas no local, o quadro de funcionários já havia sido reduzido no mês de junho de 2016. Dos 270 trabalhadores que atuavam na fundação, cerca de 90% foram demitidos. As guaritas de fiscalização, controladas totalmente por mulheres da região, uma experiência que redundara em emprego e renda para população local, também foram reduzidas de 28 para apenas seis. O fato vai causar grave crise na economia local, que já enfrenta uma forte seca.
“As demissões foram tentativas de barrar o fechamento do parque, no entanto, mesmo com essa medida a situação financeira da instituição é precária. Nem o estatus de Patrimônio Cultural da Humanidade assegurou a entrada de recursos suficientes. É lamentável, dediquei a minha vida aqui no parque, mas se o governo federal não reconhecer a importância do local não adianta”, lamentou Niéden.
Para a inacreditável jusburocracia nacional, nada é tão ruim que não possa piorar…
As dificuldades financeiras, do Parque se agravaram consideravelmente com uma “pedalada” financeira do Tesouro. Os recursos advindos da compensação ambiental, que antes eram enviados diretamente pelas empresas ao Parque, por decisão do Ministério, passaram a ser encaminhados diretamente ao governo federal, que, então, decidiu como distribuí-los às unidades de conservação.
A centralização foi fatal. E, pior, permitiu que o estrangulamento político, até então enfrentado com resiliência, se transformasse no garrote-vil do estrangulamento financeiro.
O último ato, o Ministro que não dirige o ministério
O ambíguo e pouco eficaz Ministro Sarney Filho, quando de sua posse no Ministério, resolveu visitar o Parque Nacional Serra da Capivara. Na ocasião determinou mundos e fundos aos seus assessores, na presença dos dirigentes da Fundação Museu do Homem Americano.
Ocorre que, aparentemente o ICMBIO, dirigido por Rômulo Mello, não entendeu o que determinara o ministro Sarney Filho. Tanto é que, após quase três meses da visita, o Presidente do ICMBIO não conseguiu sequer assinar a renovação do contrato de cogestão com a FUMDHAM.
A visita do Ministro, ocorrida na abertura da semana no meio ambiente, só ampliou o rol de frustrações de Niéde com o governo federal. Nada foi resolvido.
Detalhe igualmente impressionante é que o termo de cogestão em tela, existe desde a década de 1990…
O governo federal não enviou verbas, estrutura, viaturas, material de suporte, contratos… Sequer teve a competência de providenciar uma assinatura do ICMBio manuteindo um convêncio com a FUMDHAM.
A saída de Niéden Guidon – e o abandono do projeto que é orgulho da arqueologia nacional, revestem de “glória”, a vitória de um sistema que privilegia com sucesso sua própria mediocridade.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, integra o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro da Comissão de Infraestrutura e Sustentabilidade e da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo (OAB/SP). Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal. Responde pelo blog The Eagle View.
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