A publicidade e sua relação com o público infantojuvenil
Por Marici Ferreira*
A sociedade de consumo e da informação encontra na publicidade uma das manifestações mais modernas do fenômeno da comunicação entre os mais diversos públicos. Todavia, a publicidade voltada ao público infantojuvenil tem sido alvo de vários ataques daqueles que, a pretexto de proteger, cerceiam por completo o acesso a tal forma de comunicação.
Para tanto, há verdadeira campanha de desinformação a respeito do marco legal brasileiro aplicável, razão pela qual a Associação Brasileira dos Licenciamento (Abral) entende ser necessário expor o atual cenário legislativo e o importante papel a ser desempenhado pela população para extrair o máximo dele.
A publicidade relativa ao público infantojuvenil é objeto, no Brasil, de grande arcabouço jurídico que há várias décadas se destina a regulamentá-la e protegê-la enquanto desdobramento, de um lado, do livre pensamento e da liberdade de expressão e, de outro, das medidas protetivas da criança e do adolescente. Ao contrário do que sugerem seus opositores, não cabe ao Estado brasileiro privilegiar somente um desses aspectos em detrimento do outro, uma vez que o melhor interesse da criança ou do adolescente é atendido quando ambos têm acesso a material publicitário especificamente concebido para tais públicos.
De início, é preciso lembrar que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988, nos seus incisos IV e IX, consagrou a liberdade de expressão como um dos princípios basilares de nosso ordenamento jurídico, assegurando o exercício do livre pensamento e da atividade intelectual e artística. Nesse passo, o artigo 220, parágrafo 2º, da mesma Constituição Federal deixa claro que é “vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
Desta feita, a liberdade de expressão representa “uma garantia essencial ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade humana”, sendo certo que “a consagração constitucional da liberdade de expressão parte da premissa antipaternalista de que as pessoas são capazes de julgar por si mesmas o que é bom ou ruim, correto ou incorreto, e têm o direito moral de fazê-lo”[1].
No que toca ao mundo infantojuvenil, o artigo 227 da Constituição Federal de 1988 dispõe ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Na vigência da Constituição Federal de 1988, o Brasil ratificou a Convenção de Nova York relativa aos Direitos da Criança pelo Decreto 99.710/90, estabelecendo que o direito da criança à liberdade de expressão “incluirá a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e ideias de todo tipo, independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes ou por qualquer outro meio escolhido pela criança” (artigo 13.1).
Tal convenção dispõe, ainda, que “o exercício de tal direito poderá estar sujeito a determinadas restrições, que serão unicamente as previstas pela lei e consideradas necessárias: a) para o respeito dos direitos ou da reputação dos demais, ou b) para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger a saúde e a moral públicas” (artigo 13.2).
Portanto, os direitos e garantias previstos na Constituição Federal e no aludido tratado internacional conferem função só residual à interferência estatal em matéria de publicidade relacionada ao público infantojuvenil, na medida em que se respeitará primordialmente a autodeterminação dos membros da família, em especial o protagonismo do pátrio poder. Não há qualquer fundamento para se falar em proibição prévia a qualquer forma de publicidade para tais públicos.
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o atual convívio da liberdade de expressão com a proteção prioritária à criança no ordenamento brasileiro, tendo concluído que “a Constituição Federal em nenhum momento coonesta com a odiosa prática da censura, ao tempo em que garante a crianças e adolescentes especial proteção”. Na verdade, “o direito à ampla liberdade de expressão e o dever de proteção moral das crianças não são incompatíveis e os parâmetros para que se harmonizem estão fixados pela própria Carta da República”[2].
No âmbito infraconstitucional, o parágrafo 1º do artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor define a publicidade como abusiva quando “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”. Por sua vez, o artigo 79 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que “as revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
À medida que essas duas leis passaram a ser aplicadas no controle da publicidade relativa ao público infantojuvenil, o próprio mercado publicitário cuidou de criar regras mínimas, a partir da instituição do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e da edição, em 2006, do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, que são aplicáveis a todos os anunciantes, os quais, aliás, obedecem-nas voluntariamente.
Em total afronta a esse arcabouço jurídico, em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), órgão que integra a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, aprovou a Resolução 163/14, a qual considera presumidamente abusivo o direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente.
Antes de analisar essa resolução, é importante mencionar que a publicidade dirigida tanto ao público adulto quanto ao público infantojuvenil adota meios de comunicação que contribuem para alfabetização das crianças e para a difusão da cultura, como é o caso das revistas infantis. Desta feita, não é possível presumir que a publicidade é abusiva só por se destinar ao público infantojuvenil.
Não bastasse isso, a publicidade é apenas uma etapa do acesso da criança e do adolescente aos bens de consumo, não se podendo ignorar o relevante papel que os pais desempenham em sua educação para o consumo. Se a criança e o adolescente simplesmente forem privados de qualquer contato com a publicidade relativa aos produtos de seu interesse, os pais deixarão de ter a oportunidade de prepará-los para o momento em que passarão a tomar suas decisões de consumo.
Feitos esses necessários apontamentos, a aprovação pelo Conanda da Resolução 163/2014 revelou imediatamente sua inadequação. Desde logo, a referida resolução não fez distinção a respeito dos agentes do mercado que estariam sujeitos a seus efeitos, estigmatizando indiscriminadamente toda e qualquer empresa que possa ter sua atividade ligada a esse tipo de publicidade. Tal equiparação, por si só, demonstra que não se busca coibir condutas ilícitas, mas, sim, proibir o exercício empresarial em vários segmentos do mercado.
Nesse ponto, o Código de Defesa do Consumidor trata a questão sem incorrer em similar exagero, pois não proíbe a publicidade relativa a crianças ou adolescentes, mas somente aquelas que sejam abusivas. Ora, eventual abusividade nessas publicidades tem sido eficientemente coibida pela autorregulamentação do mercado publicitário, cujas normas se destacam por serem referência mundial. Não tem cabimento abandonar o atual sistema de autorregulamentação publicitária para instituir regime de total proibição, que levaria o público infantojuvenil a ter acesso somente à publicidade concebida para o público adulto.
Diante desse quadro legislativo, a Abral tem acompanhado propostas de modificações legislativas que, na esteira da Resolução 163/2014 do Conanda, adotam abordagem que, a um só tempo, implicaria o término de relevante segmento de mercado e vedaria que a criança tivesse acesso, por meio da publicidade, a informação essencial à sua formação como cidadão, sem a qual atingirá a idade adulta despida de condições de enfrentar a realidade do consumo.
A esse respeito, a Resolução 163/2014 do Conanda, da forma como editada, visa impedir o licenciamento de personagens infantis e a própria existência de produtos dirigidos ao público infantojuvenil, na medida em que preconiza a abolição de forma ampla, irrestrita e equivocada da publicidade dirigida às crianças.
Consequentemente, a produção de conteúdo infantil seria colocada em xeque, em afronta à livre iniciativa, ao acesso à cultura, à liberdade de criação e à plena fruição das propriedades intelectual e industrial, asseguradas pela Constituição Federal, pela Lei de Direito Autoral e pela Lei de Propriedade Industrial.
Nesse sentido, a Abral entende que as propostas legislativas pecam por não compreenderem o real papel da publicidade no mundo infantojuvenil, valendo-se da falta de informação para gerar confusão sobre o atual arcabouço jurídico, o qual se alicerça na sólida convicção de que, desde que autorizado pelos pais, o contato da criança com a publicidade adequada colabora decisivamente para o consumo responsável na idade adulta.
Esse entendimento é sufragado pelo Superior Tribunal de Justiça, o qual já decidiu que “os pais, no exercício do poder familiar, têm liberdade, ressalvados os limites legais, para conduzir a educação de seus filhos, segundo os preceitos morais, religiosos, científicos e sociais que considerem adequados”[3].
Em suma, a Abral, por si e seus associados, reafirma seu compromisso com o exercício responsável da liberdade de expressão, de acordo com o ordenamento jurídico em vigor, rechaçando qualquer tentativa de caracterizar a publicidade e a comunicação mercadológica como práticas abusivas em relação ao público infantojuvenil e reafirmando que sua atividade atende aos anseios da família brasileira, por propiciar a formação de suas crianças e seus adolescentes.
Pelas mesmas razões, a Abral se coloca ao lado da população brasileira na preocupação com a educação e com o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, independentemente da intervenção do Estado, ao qual cumpre apenas fazer firmes e valiosas as promessas constitucional e legal de liberdade de expressão e de acesso à informação.
Enquanto os pais devem se certificar de que as crianças e os adolescentes estejam preparados para o contato com a publicidade, lembrando que a experiência é uma das principais ferramentas educativas, os anunciantes devem assegurar que todos os esforços sejam expendidos para que se priorize a proteção da infância e, quando necessário, adotem medidas para impedir abusos nesta forma de publicidade, de resto salutar.
[1] CANOTILHO, J. J. Gomes et alii. Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo: Saraiva, 2013, p. 255.
[2] Tribunal Pleno, ADI 2.404-DF, rel. min. Dias Toffoli, j. 31/8/2016, www.stf.jus.br.
[3] 3ª Turma, REsp 1.072.035-RJ, rel. min. Nancy Andrighi, j. 28/4/2009, www.stj.jus.br.
*Marici Ferreira é presidente da Associação Brasileira de Licenciamento (Abral).
Fonte: Conjur