A evolução da logística reversa na gestão de resíduos perigosos no Brasil
Por Tiago Andrade Lima e Talden Farias*
Este artigo se propõe a apresentar e discutir o processo de desenvolvimento do mais importante instrumento de gestão de resíduos perigosos do Brasil, o sistema de logística reversa, que foi criado no âmbito da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e, apesar de estar em vigor desde 2010[1], somente nos últimos anos tem sido objeto de atenção por parte do poder público.
A sua concepção envolveu, por meio do instituto da responsabilidade compartilhada, toda a cadeia de atores que manuseiam e utilizam o produto perigoso, do consumidor, passando pelos comerciantes e distribuidores, até chegar aos fabricantes e importadores. Esse instituto se traduz no conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas que tem por objetivo principal fazer retornar esses resíduos, já na fase pós-consumo, ao processo produtivo para fins de reaproveitamento.
Deve se considerar que esse conceito ainda se encontra em processo de maturação perante a doutrina e os nossos tribunais. O jurista Eduardo Tomasevicius Filho reforça esse processo de amadurecimento conceitual quando afirma o seguinte: “Como a Lei 12.305/10 instituiu a responsabilidade compartilhada para todos aqueles que participaram do ‘ciclo de vida do produto’, resta analisar se esta é espécie de responsabilidade solidária, ou se seria nova espécie de responsabilidade civil”[2].
Com o devido respeito à discussão, que, inclusive, merece ser objeto de uma análise específica, cabe observar que a lei não menciona solidariedade ou subsidiariedade ao imputar responsabilidades pela logística. Além disso, o conceito de responsabilidade compartilhada foi sucedido pela expressão “individualizada”, de modo que, salvo melhor entendimento, cada parte teve a sua responsabilidade bem definida e delimitada e não se comunicam entre si.
Aspectos doutrinários à parte, o certo é que se criou um elo entre os atores da cadeia em busca da correta destinação dos resíduos perigosos e se imputou obrigações a todos, o que dota o instrumento de maior exequibilidade haja vista a necessária união de esforços para fazer com que o resíduo perigoso transite adequadamente, até a sua destinação final. Dito de outro modo, a lei alinhavou a responsabilidade que o consumidor tem de efetuar a devolução do resíduo ao comerciante, que, por sua vez, deverá proceder com a coleta e encaminhamento, por meio dos atores da cadeia, para o fabricante e o importador, os quais se encarregarão de dar a destinação adequada.
O sistema criado, apesar de aparentar ser óbvio, não o é.
Na Argentina, por exemplo, discute-se atualmente um projeto de lei para implantação de um sistema de gestão de resíduos perigosos. Diferentemente do Brasil, o sistema em discussão atribui obrigações apenas aos fabricantes e importadores, não havendo qualquer obrigação de coleta pelos comerciantes e distribuidores, o que torna a gestão pelo fabricante e importador muito mais onerosa e de difícil exequibilidade.
O modelo brasileiro é, portanto, proficiente de gestão porque, além de a responsabilização ser compartilhada e encadeada, outorgou, para cada setor (pilhas, baterias e eletroeletrônicos, dentre outros), a possibilidade de customizarem os seus sistemas de logística de acordo com as suas necessidades e realidades.
Para exemplificar, no setor de embalagens de óleo lubrificante, as ações de coleta, transporte e encaminhamento à destinação final são integralmente executadas pela entidade gestora do sistema que, financiada pelos fabricantes e importadores, contrata operadores logísticos para executar essa operação. Noutro prisma, no setor de baterias de chumbo ácido, a operação é executada pela própria cadeia, cabendo à entidade gestora do sistema monitorar, acompanhar, auditar e sistematizar essas ações.
Com relação às metas, o setor de baterias de chumbo ácido iniciou o seu sistema com 75% de meta de recolhimento na proporção da quantidade de produtos novos colocados no mercado. Já o setor de embalagens em geral (produtos alimentícios, bebidas, produtos de limpeza e afins) apresentou uma meta de apenas 22% para o ano de 2018.
Ambos os exemplos citados demonstram o acerto da legislação, que não uniformizou as regras para os setores e deixou que eles, mediante aprovação pelo poder público, se regulassem. Além disso, é preciso salientar que o envolvimento do próprio setor que comercializa e conhece o produto perigoso facilitou o manuseio e acondicionamento dos resíduos pós-consumo.
Sob outro aspecto, considerando a competência concorrente dos entes da federação para legislar sobre meio ambiente, surgiu a possibilidade de serem fixadas obrigações díspares nos termos de compromisso celebrados, à revelia do que afirma o parágrafo 1º do artigo 34 da PNRS[3]. Para evitar judicializações e garantir a uniformidade das obrigações, por cada setor, em diversos estados da federação a alternativa mais recomendada tem sido a celebração do acordo setorial em âmbito federal de modo concomitante com a pactuação dos termos de compromisso estaduais. Isso evita a heterogeneidade de visão dos estados da federação, que torna o processo moroso e dificulta o entendimento, pelos empresários, da obrigatoriedade da apresentação do sistema.
Traçando um parâmetro da situação dos estados no Brasil, se por um lado os estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná vêm protagonizando o processo de evolução da logística reversa, de outro, estados como Rio de Janeiro, Pernambuco e Goiás ainda estão engatinhando, com poucos ou nenhum termo de compromisso assinado para fins de implantação da logística reversa em seus territórios.
Desse modo, como obrigar um fabricante a apresentar o seu sistema de logística reversa ou aderir a um existente? Como garantir a participação efetiva dos comerciantes e distribuidores no sistema? Para se implantar esse complexo sistema, que envolve vários atores do setor empresarial e todos os entes da federação (estados, municípios e União), há que se estabelecer normas bem definidas e dotadas de coercibilidade.
Nesse ínterim, o estado de São Paulo, no dia 3 de abril, publicou a Decisão de Diretoria Cetesb 076/2018/C[4], que se traduziu num importante esforço no sentido de emprestar efetividade aos sistemas de logística reversa naquele território. Nessa norma, que entra em vigor em 60 dias contados da sua publicação e se aplica aos empreendimentos licenciados pela Cetesb, vinculou-se a obtenção da licença ambiental à comprovação de existência de um sistema de logística vigente.
Com isso, os fabricantes e importadores que atuam no estado de São Paulo somente obterão a licença ambiental se comprovarem a adesão a um Termo de Compromisso existente para o setor ou mesmo se, individualmente, demonstrarem que têm um sistema de logística reversa em funcionamento.
Mostra-se um grande avanço no processo de dar efetividade à PNRS, haja vista que todos os fabricantes e importadores de produtos perigosos precisam da licença ambiental para exercer a sua atividade. Como efeito, em análise perfunctória, pode-se concluir que, caso não demonstrem possuir sistema de logística reversa, poderão ter suas atividades embargadas.
Nunca é demais lembrar que existem setores, como o de embalagens em geral, com metas bastante acanhadas de quantidade de resíduos coletados em confronto com a quantidade de produtos gerados, motivo pelo qual urge a necessidade de adesão dos fabricantes e importadores de produtos perigosos para acelerar a implantação desse importante instrumento de gestão.
Desse modo, o ato normativo da Cetesb se tornou imprescindível para que novos fabricantes e importadores apresentem os seus sistemas, causando, por consequência, como efeito futuro e benéfico ao meio ambiente, o aumento das metas quantitativas fixadas nos termos de compromissos e acordos setoriais.
Em se tratando de um processo contínuo, saliente-se que, em 2016, a Cetesb, por meio da Decisão de Diretoria Cetesb 120/2016/C, já havia estabelecido uma regra importante para esse fim, quando isentou, do Certificado de Movimentação de Resíduos de Interesse Ambiental (Cadri), as empresas aderentes a termos de compromisso no estado. Essa norma passou a estimular a adesão das empresas que necessitam desste documento e fortaleceu o sistema de logística reversa na medida em que emprestou ao setor, mais especificamente à entidade gestora do sistema, a responsabilidade pela autorização da movimentação do resíduo e pelas informações prestadas ao órgão ambiental licenciador.
Ainda em continuidade ao processo, o estado do Paraná instituiu comitês de acompanhamento do programa (CAP) em cada um dos termos de compromisso celebrados, constituídos por um representante de cada parte signatária, com o objetivo de acompanhar a implementação e a execução do sistema, demonstrando assim a importância da criação de fóruns setoriais para evolução do processo no Brasil.
Como próximos passos, outra medida igualmente importante que está sendo estruturada no âmbito do estado de São Paulo, e em âmbito federal, é a instituição de um grupo multissetorial com representantes dos diversos setores obrigados a estruturar o seu sistema de logística reversa. Esse fórum servirá para a troca de experiências sobre o assunto e para buscar soluções para cumprir as metas previstas em cada um dos sistemas.
No entanto, como o clarividente processo de evolução do sistema no país ainda é relativamente recente no que se refere à sua implantação, ainda subsistem questões a serem enfrentadas. Uma delas vem afetando bastante o desenvolvimento da logística reversa no Brasil: a participação do comerciante e do distribuidor no processo. Isso porque, por serem empresas que, em sua grande maioria, são dispensadas de licenciamento ambiental, em razão do grau de impacto das suas atividades, e, por consequência, não sofrem fiscalização com frequência, o poder público ainda não desenvolveu um instrumento para obrigar a adesão desses atores da cadeia ao sistema.
Por outro lado, são atores vitais para o cumprimento das metas previstas porquanto compõem o início da cadeia de coleta dos resíduos perigosos, uma vez que cabe ao comércio coletar os resíduos perigosos pós-consumo. Além disso, a pulverização locacional desses estabelecimentos torna acessível a entrega, por parte do consumidor, do resíduo.
Como a própria norma recentemente editada pela Cetesb é ineficiente para esse caso, haja vista que, como dito alhures, somente se aplica a empreendimentos sujeitos a licenciamento ambiental, alguns estados têm estudado formas de tornar obrigatória a apresentação, por parte do comércio, de um sistema de logística reversa ou de adesão a um sistema, de modo semelhante à medida adotada pela Cetesb.
Uma delas seria a vinculação da comprovação de adoção de um sistema à emissão do alvará de funcionamento municipal. Nesse caso, haveria que se buscar uma participação efetiva dos municípios para incorporação dessa exigência nos seus territórios. Outra alternativa seria por meio da inscrição estadual. Nesse caso, as secretarias das fazendas estaduais passariam a incorporar esse requisito ao pedido de inscrição ou de renovação.
Ambas as medidas seriam efetivas. Entretanto, há um tempo natural de discussão, que deve ser respeitado, uma vez que o assunto ainda não está na pauta diária dos municípios e, muito menos, das secretarias das fazendas estaduais, o que deve acontecer nos próximos meses e será motivo de análise nos próximos artigos sobre o assunto.
[1] BRASIL. Lei 12.305, de 2 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, Brasília, DF, ago 2010.
[2] ConJur. São Paulo, 2016. https://www.conjur.com.br/2016-jan-11/direito-civil-atual-seria-afinal-responsabilidade-compartilhada. Acesso em 4 de abril de 2018.
[3] BRASIL. Lei 12.305, de 2 de agosto de 2010. “Art. 34, § 1º. Os acordos setoriais e termos de compromisso firmados em âmbito nacional têm prevalência sobre os firmados em âmbito regional ou estadual, e estes sobre os firmados em âmbito municipal.”
[4] CETESB. São Paulo, 2018. <http://cetesb.sp.gov.br/wp-content/uploads/2018/04/DD-076-2018-C.pdf>. Acesso em 2 de abril de 2018.
Tiago Andrade Lima é sócio titular na área de Direito Ambiental do Queiroz Cavalcanti Advocacia, mestre em Tecnologia Ambiental pelo Itep e especialista em Direito Urbanístico e Ambiental pela Faculdade Salesiana.
Talden Farias é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Minerário.
Fonte: Conjur