A DITADURA DA CANETA
ou
Discordância Ideológica, agora, virou Improbidade…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Um anônimo, humilhante e burocrático dedo acusador paralisa o Estado
Este artigo trata de um tumor institucional, de caráter jusburocrático, gravíssimo. Esse tumor compromete a funcionalidade do Estado Brasileiro e comprime as instituições que fundamentam nosso regime democrático.
Trata-se da ditadura da caneta, fenômeno teratológico proveniente da distrofia funcional e hegemonia política das carreiras jurídicas de Estado e do controle ideológico do Ministério Público sobre a Administração Pública.
Essa distrofia tem origem em outra disfunção: o descompasso político na implementação da lei e o avanço da corrupção sobre as funções de Estado. Esses tumores malignos, que corroem a burocracia e a economia no Estado Brasileiro geraram forte demanda social por um maior controle judiciário sobre a atividade do estado. A reação orgânica das instituições, frente à pressão da sociedade brasileira, foi buscar maior respaldo nos instrumentos de conformidade jurídica. O problema é que essa demanda ocasionou uma enorme hipertrofia nos organismos de controle jurídico do Estado, organismos estes que, ao se assenhorarem das ferramentas de controle e execução, manejaram a seu favor a implementação das normas constitucionais e a estruturação do ambiente legal e regulatório – inclusive no que tange aos próprios vencimentos.
A ditadura da caneta firma-se, portanto, em um verdadeiro paradoxo. Empoderados por motivos aparentemente justos, os organismos jusburocráticos do Estado, hipertrofiados, terminaram por gerar duas disfunções tão ou mais graves que a ineficiência e a corrupção que deveriam combater.
Não por outro motivo, o Estado Brasileiro morre, hoje, não apenas pela desorganização funcional e a corrupção, mas, também, pela judicialização da Administração Pública, pelo controle arbitrário da vida civil em função do “politicamente correto”, pelo ativismo judicial e pela corrosiva criminalização da política.
A consequência funesta da Ditadura da Caneta é a morte agonizante da Administração Pública e a inversão de valores na sociedade.
Da ditadura do politicamente correto e sua sinérgica mediocridade, temos tratado em vários outros artigos. Vale, aqui, nos debruçarmos sobre os efeitos da ditadura da caneta na Administração Pública.
Da paralização da Administração Pùblica e a falência das instituições democráticas, resta, hoje, um inócuo Estado Paraplégico.
UM ESTADO PARAPLÉGICO
As reclamações pululam, nos órgãos federais, estaduais e nas prefeituras, com relação à paralisia que acomete a burocracia estatal.
Órgãos ambientais e de saúde, atividades de planejamento, licenciamento e execução de obras estruturantes, são os que mais sofrem.
Ao que tudo indica, decidir e executar tornaram-se atividades de risco.
O cidadão, como sempre, é o grande prejudicado.
A paralisia gera conflitos, desentendimentos e falta de prestação de serviços essenciais. Gera insegurança jurídica na autorização legal de atividades econômicas e obstrui obras de infraestrutura mesmo quando já autorizadas. O efeito direto é a deseconomia, o desinvestimento, o desemprego e a desaceleração.
Na outra ponta do fenômeno, encontra-se o fiscalismo burocrático, a persecução e a judicialização, provocadas pelo ativismo, pelo biocentrismo e outros principiologismos a serviço de interesses inconfessáveis. Nesse campo as arbitrariedades pululam, justificadas por “pretextos justos” de toda ordem.
Autuações disparam e defesas são ignoradas nos processos administrativos. Termos de ajuste de conduta são empurrados goela abaixo de empreendedores como se fosse confissão de dívida, funcionários são pressionados por “recomendações” e “requisições” arbitrárias e, mal conduzidas, quase sempre ineficazes. Na Administração Pública, as chefias, acovardadas, não agem sem antes recorrer a parecerismos intermináveis de assessorias jurídicas que nunca funcionam – a não ser para obstruir.
Tanto quanto a falta de resposta a requerimentos e recursos, a obstrução ao próprio direito de protocolo virou febre na burocracia estatal.
A insegurança jurídica domina o cotidiano da Administração Pública, atormenta o cidadão e desnuda um Poder Público que não resolve conflitos – pelo contrário, os origina.
A judicialização, tornou-se inevitável.
De fato, a judicialização não é fenômeno voluntário. Ela ocorre por provocação, usada como ferramenta político-ideológica para fomentar conflitos, obstruir atividades governamentais e inviabilizar projetos e empreendimentos e, também, como recurso extremo para intentar desobstruir atividades, desimpedir a implementação de projetos ou empreendimentos, impactados justamente por impasses burocráticos gerados pela mesma pretendida indefinição, face aos mesmos interesses
Estamos diante de um Poder Público que não se desencumbe. Pelo contrário, cria impasses e os judicializa.
A a impassibilidade administrativa e a judicialização do governo constituem as duas frágeis muletas de um Estado paraplégico, atingido em sua espinha dorsal pela sanha por controle dos poderes disfuncionais que o constituem. Senão vejamos:
A SANHA POR CONTROLE
Procedimentos administrativos, como por exemplo o licenciamento ambiental, acabam atolados no pântano das indefinições técnico-jurídicas (algumas aguardando literalmente que o empreendedor morra sem ver sua atividade autorizada).
A judicialização sistemática das estruturas políticas de poder, pelos mais diversos motivos – de questiúnculas a casos graves de corrupção, estigmatizam cargos e funções. Ninguém mais ousa assumir um cargo público por nomeação e, ainda que concursado, resiste em ser nomeado para chefias.
O efeito é paradoxal: o controle excessivo da “probidade”, conduz à improbidade.
O temor da exposição e o risco de ficar com o nome “sujo”, envolvido em alguma investigação ou ação judicial, inibem pessoas de bem a ocupar um cargo público de importância. Essa hesitação gera um vazio que estimula carreiristas de toda ordem a fazê-lo, por concurso, nomeação ou eleição.
Ainda há quem, por elevado espírito público, “ouse” ocupar um cargo ou função administrativa. No entanto, estará ciente de que ganhará, cedo ou tarde, uma multa de um tribunal de contas ou uma ação de improbidade, como prêmio pela ousadia…
De fato, há uma sanha por controle, nos órgãos de controle.
Ainda que aparentemente ocorra por motivos justos, essa sanha de controle está gerando uma nova e descontrolada tirania.
PODERES DISFUNCIONAIS
Se o fenômeno ocorre com a Presidência da República, é nos pequenos municípios que a disfunção de poderes é mais sentida.
A vontade popular tem sido sistematicamente rasgada por cassações de mandatos e enxurradas de ações de improbidade, promovidas muitas vezes por conta de questiúnculas de boteco, discordâncias políticas entre promotores, juízes e prefeitos, quando não encetadas por inconformismo do denunciante ocasional, do funcionário ou do persecutor, com o próprio resultado das urnas.
Cidades inteiras já entraram em processo de paralisia administrativa e degradação social, ambiental e econômica, por conta da indefinição sobre quem, de fato, governa o município.
O pavor de decidir, o temor de assinar e o medo de assumir, hoje, está gravado no rosto, coração e mente dos gestores públicos, impedidos de agir, paralisados por intervenções judiciárias e vítimas de crise de identidade.
A paralisia generalizada pelo medo de decidir é fenômeno que destrói o Estado Democrático de Direito, esmaga o cidadão contribuinte e reduz o servidor público a uma figura minúscula, coagida por um gigantesco, humilhante, anônimo e burocrático dedo acusador.
Como resolver? Questionam gestores, diretores e secretários, preocupados com a ineficiência da máquina que administram.
O fato é que a “judicialização” da Administração Pública e a doença do “parecerismo”, decorrem de um comportamento recorrente, protagonizado por uma casta de novos burocratas jurisconsultos – uma jusburocracia, embevecida consigo própria e desconectada da realidade social, que está reduzindo o Brasil a um imenso, inútil e dispendioso cartório judiciário, precedido de um longo e extenso labirinto jurídico.
Uma ponderação que nunca é suscitada, precisa aqui ser feita: É fato que a fragilidade institucional, a corrupção epidêmica e a incúria sistemática formam o grave câncer que corrói o Brasil. Por óbvio que essa disfuncionalidade necessita de ação firme das instituições para sua contenção e extirpação. No entanto, isso não pode ocorrer à custa da morte do paciente… ou pode?
Vamos à identificação das causas:
O USO IDEOLÓGICO DA REPRESSÃO À IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
Necessário ir à raiz da questão: O que gerou tudo isso?
O Ministério Público é de pronto apontado como grande responsável pela intimidação da máquina burocrática estatal, levando-a à paralisia. A causa estaria no uso indiscriminado da ação de improbidade administrativa e dos procedimentos inquisitoriais preparatórios, produzindo distrofia administrativa.
Há, de fato, uma deformação cultural, ainda não corrigida pelo Poder Judiciário, que não permite um efetivo controle de legalidade e, com isso, estimula desvios de finalidade no manejo desses procedimentos.
Na verdade muitas queixas se relacionam ao uso dos procedimentos (inquéritos civis e criminais, ações civis públicas e de improbidade administrativa), como forma de impor a vontade ocasional do promotor sobre administradores e técnicos responsáveis pela gestão na Administração Pública.
O foco maior dessa distrofia ocorre na contratação de serviços, execução de obras de infraestrutura e nas questões ambientais.
Quando editada, a lei de improbidade administrativa foi festejada por todos que lidavam com a causa pública – incluso este autor, que na ocasião estava à frente da Subcomissão de Meio Ambiente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional São Paulo.
A Lei Federal 8.429/92, de fato, constitui importante instrumento de combate à corrupção e à desonestidade administrativa, e não há dúvida quanto a isso.
Ocorre que o pr
oblema não está na lei. Está no operador dela, o promotor de justiça.
A DISFUNÇÃO NO MINISTÉRIO PÚBLICO
A estrutura do Ministério Público Brasileiro sofreu mudanças radicais a partir da Constituição Federal de 88.
Com o novo regime constitucional, o MP foi obrigado a se adaptar para atender à demandas, civis e administrativas que não correspondiam ao foco tradicional da instituição: que era a persecução penal. Essa mudança fraturou a estrutura hierárquica e disciplinar do órgão.
O reforço institucional do organismo tornou a carreira mais atraente aos novos profissionais do direito e meca de jovens idealistas que não apenas desconfiavam dos desafios do mercado, como também não acreditavam na resolução dos problemas da sociedade por meio da política, impondo-se sua criminalização…
Teses orgânicas de natureza civil, trabalhista, tributária, ambiental, administrativa, várias delas carregadas com tinturas ideológicas, doutrinas libertárias, ativismos e ecologismos, proliferaram entre os promotores e procuradores. O Ministério Público (e, também, o Judiciário) enfrentou uma ebulição de doutrinas que antes ocorriam apenas no meio advocatício e nas academias…
Ocorre, no entanto, que o Ministério Público não possui a mesma natureza orgânica e muito menos o dinamismo e a liberdade doutrinária inerente ao ministério privado dos advogados. Muito menos permite a instituição que seus serventuários ajam com a liberdade de administrar teses a terceiros, como se observa em uma academia…
Isso, porém, parece ter sido ignorado – e a ignorância é componente dos ousados.
Explico:
A nova estrutura institucional, sem ter sido bem compreendida por seus dirigentes, foi preenchida em seguidos concursos, com novos quadros entusiasmados com as novas atribuições – sobre as quais pouco ainda se sabia…
Somou-se a esse conflito de conhecimento quanto á natureza de atribuições, o hiato na formação teórica do próprio grupo dirigente – em especial no que tange à teoria de Estado – uma base teórica que demanda algo para muito além da visão rasa da constituição e do manejo estreito das ferramentas do direito público – requeridas nos concursos públicos.
Toda essa ignorância foi, no entanto, acobertada por camadas de arrogância – seja dos que ali já se encontravam e nada ainda sabiam, seja dos que ingressavam, plenos das melhores intenções, e desprovidos de razões – aquelas de Estado – que deveriam nortear suas funções.
A ousadia – apanágio dos que ignoram – é a arma dos arrogantes. Uma vez utilizada, causou profunda fratura no sistema de representação social da instituição ministerial.
Essa fratura ideocrática propiciou aos novos promotores e procuradores a oportunidade de “testarem” teses variadas que traziam consigo, fazendo-o sobre o frágil e já conspurcado tecido social.
A temporada de testes desenvolveu-se sem que ocorresse qualquer maturação interna, que gerasse um vínculo de responsabilidade institucional junto à direção do órgão ministerial.
Para piorar, a má formação acadêmica no campo da Teoria do Estado, da Ciência Política e do Direito Público, sofrida por todos os operadores do direito nos últimos cinquenta anos, inoculou no organismo do ministério público uma visão preconceituosa e bastante distorcida a respeito das interações das várias esferas do Poder Público e destes com a sociedade. Um dos piores preconceitos nutridos nesse cipoal de conhecimentos rasos, foi justamente aquele em relação à legitimidade e respeito devidos ao mandato popular, às funções executivas e ás investiduras na Administração Pública…
Promotores, procuradores (e, em certa medida, os juízes), passaram a não conhecer limites, até mesmo por ignorarem a razão política, histórica e científica de sua existência no Estado Moderno.
Isso conflitou e ainda conflita com o que se espera do exercício funcional do antigo persecutor, hoje promotor de justiça: um comportamento absolutamente conservador no exercício da fiscalização da lei.
Pode parecer “moderninho”, mas o fato é que a ausência evidente de conservadorismo gera insegurança jurídica. A insegurança jurídica é o primeiro sintoma da quebra do regime democrático.
PRETEXTOS JUSTOS PARA EXERCER A TIRANIA
Um anônimo, humilhante e burocrático dedo acusador paralisa o Estado
A falta de limites formou caldo de cultura para operadores autoritários mais ousados se apropriarem do manejo da lei de improbidade.
Os “bem intencionados” simplesmente passaram a fazer valer sua própria orientação doutrinária e ideológica, em prejuízo dos parâmetros da razoabilidade, na aplicação da norma de controle na Administração Pública.
Há uma sutileza nesse fenômeno de ideologização.
No geral, não se verifica improbidade no uso da lei de improbidade, mas, sim, uma ação ideologizada em várias frentes, dentro do organismo, gerando arbitrariedades danosas à harmonia institucional.
Um bom exemplo dessa desarmonia foi a “urbanização” do Código Florestal (da qual, reconheço, fui coparticipe entusiasmado, imbuído das melhores intenções na proteção ambiental, juntamente com grandes amigos promotores de então).
Com efeito, à época (nos anos 80 e 90 do século passado), havia desprezo corrente na administração pública quanto à aplicabilidade do Código Florestal na área urbana.
Cursos d’água eram canalizados indiscriminadamente, quando não tamponados para permitir empreendimentos imobiliários. A tolerância com a ocupação de encostas e áreas de risco por moradias populares era ainda pior que a de agora. As autorizações para desmate, supressão de vegetação, geravam verdadeiros desertos de concreto armado que chegavam a alterar os microclimas das cidades.
A luta contra isso parecia inglória aos que lutavam pela causa ambiental de então, incluindo o Ministério Público. A jurisprudência era pacífica no sentido de tolerar a discricionariedade para com a supressão dos recursos florestais na administração do solo das cidades. A própria introdução do dispositivo legal que permitia à legislação urbana tratar de forma diferente áreas de proteção permanente, porém “dentro dos limites deste código”, era recente, pois que este veio a ser alterado no final da década de 80 face à nova Constituição e ainda não havia sido assimilado nem pela Administração Pública, muito menos pelo Judiciário.
Foi então que tivemos, todos os que lidavam com o nascente “Direito Ecológico”, a brilhante ideia de fazer uso das chamadas Recomendações do Ministério Público aos administradores, acenando no horizonte com a aplicação da lei de improbidade administrativa, caso insistissem aqueles no entendimento de não se aplicar o Código Florestal nas cidades.
O resultado da ideia, executada com as melhores intenções, foi tão eficaz quanto desastroso.
O que deveria ser exceção passou a virar regra.
Milhares de bons profissionais, pessoas sérias, indivíduos probos, honestos, gente com mestrado, doutorado na área ambiental, técnicos com carreira imaculada, passaram a ser confundidos com gente corrupta e desonesta – jogados na vala comum da improbidade administrativa. Cidadãos sérios passaram a ser apenados pela lei por simplesmente discordarem, em termos técnicos e conceituais, do que lhes havia sido “recomendado” pelo Digno Promotor de Justiça no plantão da esquina…
O clima de terror passou a ser justificado pelo interesse “superior” em prol do “meio ambiente”. Essa postura reativa abriu um abismo comportamental, rasgando o dever de cordialidade entre profissionais do direito e destruindo o devido respeito dos persecutores e julgadores aos agentes públicos. Como na fábula de Esopo, o pretexto justo foi usado para o exercício da mais arrogante tirania.
O APARELHAMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Um forte fator de mutação residiu na adoção do chamado “princípio do promotor natural” – uma “conquista” obtida em reação a desmandos ocorridos quando da politização da cúpula do órgão, logo após editada a constituição.O Ministério Público mudou sua essência em pouco mais de vinte anos.
Em nenhum momento esse princípio, afeto aos membros da magistratura, poderia, no âmbito da dinâmica persecutória do Ministério Público, vigorar como algo positivo e estrutural. Porém… vigora.
O “princípio do promotor natural” tornou-se algo teratológico para um órgão que deve seguir organicamente a unicidade e não a absoluta liberdade, na formação da convicção – conferida a penas a magistrados.
A distorção principiológica favoreceu a ação de jovens idealistas, em início de carreira – jovens preocupados com mudanças e ideologicamente articulados com posturas libertárias, causando atrito com a geração mais velha dentro do próprio MP.
Contra esse fenômeno “libertário”, foram vencidos os procuradores mais conservadores – acusados de pretender “manipular a democracia interna do órgão”. Na verdade, do alto de sua maturidade e experiência, a velha geração anteviu os problemas institucionais decorrentes da pretendida mudança. Problemas que estão mesmo ocorrendo.
O Ministério Público assumiu um rosto arrogante e voluntarioso, moldado pelos novos promotores. O fenômeno acelerou com os seguidos concursos públicos dos últimos trinta anos, para atender á crescente demanda do desenvolvimento econômico e consequente aumento da complexidade dos conflitos sociais e institucionais no Estado Brasileiro.
O controle ideológico protagonizado por essa massa de novos militantes foi se impondo nas estruturas dos Ministérios Públicos, com efeitos bons e ruins na Administração Pùblica país afora.
Acordos e Resoluções estabelecidos nas organizações ministeriais, por meio de encontros e seminários, a subscrição de cartas e manifestos, portarias internas e outras formas de “deliberação”, passaram paradoxalmente a integrar a massa de procedimentos que engessam a conduta ideológica dos promotores de justiça que iniciam a carreira.
O início de carreira gera outra grande distorção. Joga profissionais inseguros, premidos por cobranças de resolução dos conflitos os mais variados, no meio de comunidades de interior, com usos e costumes mais sedimentados, gerando conflitos políticos e deseconomias.
Os conflitos resultantes da implementação de normas ambientais aos casos concretos é um bom exemplo do problema. Senão vejamos:
A militância pessoal em favor de uma causa “justa”, passou a ser confundida com “especialização profissional” (deformidade sensível independente do militante engajado possuir boa formação teórica ou conhecimento de causa). A assunção de perfis ideológicos engajados, por exemplo, promoveu o “aparelhamento” da instituição pelos biocentristas.
DISFUNÇÕES BIOCENTRISTAS E PARADOXOS INSTITUCIONAIS
Um Ministério Público aparelhado não pode cumprir com a missão de fiscalizar a lei e zelar pela probidade.
O fenômeno do aparelhamento, de fato, acarretou paradoxos institucionais.
Tomemos como exemplo a nobre função de proteger o equilíbrio ambiental.
De fato, a implementação da legislação ambiental pelo MP têm apresentado várias disfunções, todas elas ocasionadas pelo aparelhamento da instituição pela doutrina biocentrista.
Um sintoma dessa disfuncionalidade está na contradição ocasionada pela introdução na lei orgânica do Ministério Público, da possibilidade do Termo de Ajustamento de Conduta vir a ser submetido a uma instância superior dentro do próprio organismo.
O mecanismo, que a princípio serviria para conferir certo controle hierárquico e institucional, acabou por fortalecer corpos intermediários já aparelhados, de controle especializado, como “Centros de Apoio”, “Coordenadorias”, “Câmaras” e grupos de atuação setorial, que passaram a opinar nos casos submetidos aos Conselhos Superiores daqueles órgãos, restringindo a possibilidade de discordância.
O fenômeno gerou engessamento procedimental. Retirou as opções do promotor natural quanto à aplicabilidade razoável da norma legal ambiental ao caso concreto. Instrumentalizou o Conselho Superior à vontade dos Grupos de apoio e coordenadorias ideologicamente mais engajados.
A introdução de conceitos protofascistas, como o “Princípio de Vedação de Retrocesso Ambiental”, servem como verdadeira trava institucional a qualquer resolução de conflito.
Na verdade, o princípio, “construído”, montado e propagado no sistema fisiológico do Ministério Público, por sua “militância engajada”, não resolve e, sim, GERA conflitos.
ESTATOLATRIA
Estatólatras – indivíduos que cultuam a ideia do Estado ser o único caminho para a resolução de todos os problemas – proliferaram nesse conflituoso caldo de cultura.
Com a estatolatria nasce a chamada “nova ordem” biocentrista, delimitando atitudes de engessamento procedimental e intervencionista.
Sob a égide biocêntrica ocorreu a desumanização da norma ambiental e a elevação de regras à categoria de dogmas.
A estadolatria biocentrista condicionou a conduta dos promotores e procuradores, e se impõe a funcionários públicos submetidos à vontade daqueles (que assim agem pelo medo de discordar…).
Retirou-se a capacidade de raciocinar livremente, interpretar a norma de acordo com a realidade concreta e fazer bom uso da lei ambiental em função do bem comum.
Esse fenômeno contamina nossa estrutura burocrática a ponto de hoje afetar sensivelmente o desenvolvimento econômico do país.
A SUPERVALORIZAÇÃO DAS CARREIRAS JURÍDICAS
A teratológica mutação do Ministério Público afetou todas as carreiras jurídicas nos organismos estatais.Um anônimo, humilhante e burocrático dedo acusador paralisa o Estado
Como reação ao fenômeno, as carreiras jurídicas passaram a ter um valor desproporcional em relação às carreiras técnicas na Administração Pùblica.
Com a jusburocracia, surgiu, ao invés de decisões eficazes, pareceres eficientes na função de provocar paralisias administrativas…
O medo da improbidade administrativa por conta do controle ideológico do promotor arrogante, gerou o fenômeno da busca incessante do parecer jurídico antes, durante e depois de qualquer procedimento decisório na execução dos atos administrativos…
O “parecerismo” virou uma epidemia que assola toda a estrutura decisória na administração pública, e acabou por favorecer o medíocre, que nada decide e, portanto, nunca erra…
A paralisia ocasionada pela concentração de poderes na jusburocracia, ao invés de combater, abriu as portas para a corrupção, privilegiou o administrador arbitrário e terceirizou decisões eminentemente técnicas para o juízo palpiteiro do parecerista jurídico de plantão.
A paralisia administrativa gerou, por conseguinte o controle ideológico provindo da advocacia pública, principalmente por competir a esta a análise dos procedimentos e o parecer na redação de portarias a serem editadas.
As carreiras jurídicas públicas, assim, passaram a manejar uma arma letal, destruidora de sonhos, estigmatizadora de vidas, perigosíssima e, contudo, ainda não tutelada legalmente pelo Estado: a caneta.
A reação administrativa ao arbítrio sem controle do Ministério Público também provocou o arbítrio jusburocrático no âmbito da própria administração. Procedimentos usuais permanecem paralisados nos escaninhos da Administração, instruídos com pareceres que nada solucionam.
Não há quem decida, face ao temor da ação civil pública por improbidade administrativa. E não raro essa paralisia é reforçada pelas assessorias jurídicas internas.
Criou-se o fenômeno da simbiose hipócrita: o controle da atividade administrativa por meio do medo, pelo Ministério Público, alimenta a assunção do controle de assessorias jurídicas e procuradores no interior da Administração Pública. Essa patologia simbiótica engessa duplamente o administrador técnico e o reduz a um ente temeroso de adotar uma decisão técnica sem necessariamente obter o aval jurídico (parecer) do procurador de plantão…
A situação tende a piorar ainda mais com a adição de novos atores, munidos de teratológica “autonomia funcional”: o Ministério Público de Contas, a Ouvidoria e a Defensoria Pública – carreiras que já surgem infladas de quadros tomados pela arrogância, aparelhadas ideologicamente, com risco potencial para desviarem-se das honrosas funções para as quais foram criadas.
Em verdade, no âmbito das carreiras jurídicas de Estado, para cada uma de execução, criaram-se três de controle…
Assim, para além do analista jurídico, diria o psicanalista que o caso em tela é sintomático de uma síndrome provocada pelo desejo irrefreável que alguns indivíduos possuem, de controlar a vida dos outros – desejo simbioticamente acoplado à inação daqueles vencidos pelo temor ou simplesmente interessados em fazer do impasse um bom negócio…
Ovídio já vaticinava que “para o burocrata, toda solução é um problema”. Isso agora é lema – uma razão de ser estratocrata para as carreiras jurídicas, no Poder Público nacional.
Consequência funesta: o artigo 37 da Constituição Federal foi “revogado” pelas boas intenções do “ “estatocracismo” politicamente correto, elástico e transcendente, prestigiado pela covardia institucional e pelo “parecerismo”.
Explico: a pretexto de perseguir a moralidade, rasga-se a razoabilidade, ignora-se a proporcionalidade e despreza-se a eficiência, tudo em nome de uma legalidade sem causa absolutamente descasada com a realidade material dos fatos.
A grande vítima é o Estado Democrático de Direito, razão de ser de nossa Constituição, e sem o qual não existe desenvolvimento sustentável.
O mais funesto é que, no impasse, não raro a corrupção vigora…
O JUSBUROCRATA CUSTA MUITO CARO…
Um anônimo, humilhante e burocrático dedo acusador paralisa o Estado
O desequilíbrio da balança no âmbito da Administração Pública, entre a técnica, o controle civil e as carreiras jurídicas, saiu do controle da moralidade pública para tornar-se, uma questão de moralidade pública.
A supervalorização das carreiras jurídicas gerou profunda distorção orçamentária.
A conflituosidade jurídica ocasionada pelas disfunções acima apontadas, quais sejam, o ativismo judiciário, o biocentrismo, a arrogância, a judicialização da Administração Pública, a criminalização da política, a condução de gente de bem e criminosos à mesma vala comum da improbidade administrativa, provocou o inchaço da máquina burocrática judiciária e, por consequência, das burocracias que servem à jusburocracia.
Esse descontrole gerou disfunções sinérgicas valorativas – favoreceu o surgimento de supersalários, gratificações, auxílios, etc., todos devidamente equiparados entre carreiras jurídicas, com benesses aprovadas por meta-pareceres e meta-decisões interrelacionados.
O resultado desse inchaço teratológico está na imensa disparidade de ganhos auferida pelos componentes das carreiras jurídicas de controle, constatada pela própria receita federal.
Em recente publicação oficial, o Tesouro Nacional informou que as carreiras mais bem remuneradas do país são: 1-titular de cartório. 2-magistrado, 3-promotor e procurador de justiça (e da república), e … 6- advogado público e procurador de autarquia.
Isso demonstra o quanto a ditadura da caneta interage com a máquina burocrática.
Ao mesmo tempo que a máquina da Administração é fiscalizada pelas carreiras jurídicas, essa máquina também as sustenta – duas caras da mesma moeda.
A disparidade não tem controle. Não há absolutamente controle social sobre essas profissões, cada vez mais dotadas de “autonomia funcional e financeira”.
O pior é que, por serem detentoras do controle da legalidade, as carreiras componentes da jusburocracia exercem o bloqueio jurídico de qualquer iniciativa de harmonizar ganhos e reduzir privilégios. Contam, nesse mister, com um poder de Estado totalmente integrado por carreiras jurídicas – o Judiciário, que igualmente sofre da mesma teratologia.
Tornou-se, pois, evidente a defasagem do marajaísmo da jusburocracia frente a outras carreiras públicas tão ou mais essenciais à Nação – como a de professor, de integrante das Forças Armadas, dos serviços de Saúde, etc…
A teratologia é maior ainda se ocorrer a comparação dos ganhos estratosféricos da jusburocracia com as mesmas carreiras jurídicas no mercado – sujeito aos riscos da livre-iniciativa e, portanto, passível em tese de conferir maior retorno financeiro aos que nele se firmam…
Seria a lógica normal do sistema capitalista, se o controle da jusburocracia no sistema constitucional do Brasil não estivesse abolindo a democracia para substituí-la pela Ditadura da Caneta…
É PRECISO DAR UM BASTA
Respondendo à pergunta feita pelos administradores públicos, no início do texto, será preciso ter coragem para por um fim à DITADURA DA CANETA.
É necessário determinação para reconhecer situações críticas e executar tarefas essenciais á manutenção do Estado de Direito, resgatando o país do cartorialismo em que se encontra.
Senão vejamos:
a- É preciso resgatar a técnica e a engenharia. Conferir razão prevalente à solução técnica dos conflitos, reduzindo sua judicialização;
b- É preciso resgatar o conceito de razoabilidade na Administração Pública; Despolitizar o judiciário e o Ministério Público;
c- É necessário, também, combater a estatolatria e a militância biocentrista, encasteladas no seio das carreiras jurídicas, incluso o MP.
d- É preciso resgatar a ADVOCACIA PÚBLICA, diferenciando-a das carreiras de controle jus-administrativo. Afinal, o advogado possui condições de encontrar saídas jurídicas para resolver conflitos e não se prende a conceitos engessados e posturas administrativas rígidas típicas das controladorias;
e- Sobretudo, é importante implementar os mecanismos de controle interno e externo do Ministério Público.
A criminalização da política e a judicialização da Administração Pública não conduzem à democracia e, sim, à ditadura.
A saída está na transparência dos processos relativos ao controle das atividades administrativas e judiciais.
A iniciativa de busca de um controle social das atividades de controle jurídico e jurisdicional é de suma importância para o Estado Democrático de Direito.
Essa busca por um controle social já foi observada em vários estados brasileiros e no próprio congresso nacional. As tentativas de estabelecer um rito interno que obrigue determinadas iniciativas a passarem pelo crivo do Procurador Geral ou mesmo tribunais, não podem ser confundidas como “favorecimento à corrupção”. Deveriam ser bem vindas.
A confusão entre a busca por um controle social das carreiras jurídicas e o seu impedimento na investigação de malfeitos é incentivada por aqueles que não querem qualquer controle. Há necessidade de separar o joio do trigo nessa polêmica.
A confusão permitiu o ressurgimento do corporativismo em pleno processo de transparência da administração pública.
A magistratura, por exemplo, que tratou de evoluir para buscar um controle mais próximo da sociedade, por meio do Conselho Nacional de Justiça – nos últimos anos involuiu, pressionada pelos interesses corporativos descompromissados de qualquer outro interesse que não seja o da própria burocracia judicial.
É preciso resgatar as profissões jurídicas do corporativismo. Conferir dinamicidade às carreiras jurídicas na Administração Pública, tornando-as mais transparentes e próximas do público usuário e do próprios governantes, aos quais elas competem efetivamente assessorar e aconselhar – e não atrapalhar.
Juízes, promotores, procuradores e advogados públicos não são vestais – têm obrigação de buscar a resolução dos conflitos no âmbito da Administração Pública, atender as partes interessadas e seus procuradores e, sobretudo, agir com funcionalidade.
O distanciamento olímpico é verdadeira indecência administrativa. Forma caldo de cultura para intransigências.
Intransigentes são titulares de pequenas revoltas – que revelam justamente o quão pequenos eles próprios são… Não é isso que se pretende de quem detém o poder de usar uma caneta.
Algo precisa ser feito, e logo, sob pena do Estado Brasileiro sucumbir no mar da covardia, no gelo da estatolatria, no atoleiro do “parecerismo” e na lama da corrupção.
CONCLUSÃO
Serviço público é essencial para a manutenção do Estado de Direito.
No serviço público, o servidor investido na carreira jurídica tem o dever de interagir com todo o complexo de relações e resultados advindos da execução das mais diversas tarefas da Administração Pública. Visa não só o respeito às leis mas, sobretudo, o respeito à cidadania e ao contribuinte.
Essa interação não se fará, jamais, com o isolamento, a arrogância, o descompromisso com o desenvolvimento sustentável e, muito menos, com desrespeito à dignidade do ser humano e seu legítimo direito de peticionar, ser ouvido e ver resolvidos os conflitos de interesse que, como cidadão, venha a ter com a Administração Pública.
Se necessário for, que voltemos todos ao básico, para reaprendermos a conviver democraticamente, exercendo o dever de cordialidade e, traçando limites às próprias autonomias, de forma a resgatar o princípio da reserva legal em favor, não da burocracia mas, sim, da cidadania.
Matéria originalmente publicada em: The Eagle View
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Jornalista, é Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal, Editor da Revista Eletrônica DAZIBAO e editor do Blog The Eagle View.