A descriminalização do aborto
O tema é incandescente e penetra nos aspectos culturais, religiosos, legais, morais, éticos e sociais, trazendo cada seguimento suas posições inquebrantáveis, todas elas atreladas ao desenvolvimento cultural da sociedade.
Por Eudes Quintino de Oliveira Júnior*
Mais uma vez vem à baila a discussão sobre a descriminalização do aborto no Brasil. A própria etimologia da palavra aborto (ab, preposição latina, com o sentido de afastamento, separação e o verbo também latino aborini, com o significado de morrer, desaparecer, extinguir) deixa a entender que se trata de um ato humano, voluntário ou não, com a finalidade de interromper o desenvolvimento do feto no próprio nascedouro. O tema é incandescente e penetra nos aspectos culturais, religiosos, legais, morais, éticos e sociais, trazendo cada seguimento suas posições inquebrantáveis, todas elas atreladas ao desenvolvimento cultural da sociedade. Daí a necessidade de várias vozes falarem ao mesmo tempo, numa verdadeira manifestação multidisciplinar. De quando em quando, o assunto emerge e fica exposto durante algum tempo principalmente em período eleitoral quando a imprensa pretende saber a opinião do concorrente ao cargo público, como se fosse este o critério único de escolha popular.
Desta vez, no entanto, vem com mais intensidade e incorporando o rito legal estabelecido na Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em razão da alegada controvérsia constitucional acerca da recepção dos artigos 124 e 126 do Código Penal que, no entender do autor, afrontam os princípios da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da autonomia da gestante, da não discriminação, do direito à livre procriação e outros com embasamento constitucional. Também, com a mesma intensidade, com supedâneo nos julgamentos da ADPF 54, da ADI 3510 e do HC 124.306, já decididos pelo Supremo Tribunal Federal.
A relatora, ministra Rosa Weber, indeferiu o pleito cautelar de urgência, consistente em suspender as prisões em flagrante, inquéritos policiais e processos instaurados e movidos contra os que teriam praticado o aborto voluntário realizado nas primeiras 12 semanas de gestação, lapso temporal esse contemplado em várias legislações democráticas contemporâneas que aceitam a interrupção da gravidez. Na sequência, abriu oportunidade para que vários atores sociais e políticos ingressem no feito na qualidade de amicus curiae1.
Mas, agora, estabelecida a ação, com inúmeras partes legitimadas, o tema será discutido com mais profundidade e embasamento, sem se ater a pesquisas superficiais a respeito da opinião da sociedade, que será representada por vários seguimentos profissionais. A finalidade da audiência pública, que já se mostrou suficiente quando do julgamento das pesquisas com células-tronco embrionárias, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510, é justamente a de buscar leituras diferenciadas de vários setores a respeito do mesmo tema, visando refletir, desta forma, a vontade da sociedade brasileira.
É bom observar que, em razão das novas orientações sociais, muitas delas voltadas para a descriminalização do aborto, como é o caso já citado do HC 124.306, em que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, analisando pedido de revogação de prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto, entendeu que o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação não é crime. É certo que a decisão não foi proferida pelo Plenário da mais alta Corte de Justiça do país, mas abre um precedente para que outros juízes, invocando o mesmo entendimento, venham a descriminalizar o aborto.
A fundamentação legal teve como base de sustentação a autonomia da vontade da gestante, a proteção da sua integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, além da igualdade de gênero. São direitos de última geração na avaliação de Bobbio e que, inegavelmente, tutelam a mulher na sua função procriativa, observando que, no caso presente, trata-se de gravidez proveniente de prática sexual consentida. Por outro lado, evita-se a criminalização exclusivamente contra as mulheres pobres que não podem se socorrer a um procedimento que seja seguro e fornecido pelo Estado.
E não só. A Comissão encarregada da elaboração do anteprojeto de Código Penal, além de preservar os casos legais e o de feto anencéfalo, acrescentou outras hipóteses de liberação do aborto: a) se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; b) quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, devidamente atestado por dois médicos; c) por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade, como, por exemplo, o uso de entorpecentes.
Percebe-se, pelo dinamismo inerente à sociedade, que o assunto já está em pauta legislativa e agora ganha espaço no Judiciário. Em breve, ao que tudo indica, teremos as definições dos dois poderes.
*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.
Fonte: Migalhas