A AUTONOMIA CIDADÃ EM MARCHA: A REIVENÇÃO DA POLÍTICA
“A revolução dentro da ordem foi o fascismo
e a ordem dentro da revolução é o processo
de burocratização das grandes lutas sociais”.
(João Bernardo, historiador português)
Por Marilene Nunes (*)
O QUE SÃO LUTAS POLÍTICAS AUTÔNOMAS?
Defino como autonomista todas as lutas políticas que rompem com o controle burocrático institucional, seja no âmbito das empresas ou do Estado, criando formas alternativas de relações sociais que coloca em xeque a representação política indireta desfazendo a verticalidade hierárquica entre os atores sociais durante o embate político. Esse processo irá refletir na reorganização das instituições sociais e na consciência política dos atores sociais.
Durante as lutas autônomas é criada uma nova cultura sustentada na solidariedade entre os protestantes que fortalece a luta política motivando a participação direta dos mesmos, de modo a não formar vanguardas, ou seja, comandos de decisões permanentes.
Experiências históricas de movimentos sociais autônomos surgiram pela primeira vez em relatos historiográficos a partir dos acontecimentos protagonizados pelos trabalhadores parisienses durante a guerra franco-prussiana entre os anos1870 a 1871 do século XIX. O episódio que ficou conhecido como a “Comuna de Paris” foi analisado por Karl Marx no seu texto “Guerra Civil na França”. Ainda foi produzida vasta documentação sobre a comuna a partir da correspondência mantida entre Marx e Engels e entre Bakunin e os vários ativistas anarquistas da época.
A comuna nasceu a partir de um conflito geopolítico que envolvia a unificação da Alemanha. Por ocasião da resistência popular ante a invasão prussiana na cidade de Paris, a população criou um amplo movimento popular que se alastrou atingindo a administração municipal da cidade, sem vanguardas a população criou comitês de bairros por meio dos quais as decisões de comando e gestão eram tomadas e decididas por ampla participação popular direta que resultou na expulsão dos gestores públicos oficiais. A comuna resistiu por poucos meses, ela foi derrotada pelas forças militares napoleónicas e os envolvidos foram sumariamente mortos ou deportados.
Toda a luta política gera resposta do poder constituído de forma a recuperá-la a antiga ordem que ela ousou ameaçar romper. Na Comuna a resposta venho por meio de modificações arquiteturais profundas na cidade de Paris de maneira a evitar outro levante. Avenidas foram alargadas evitando as ruas sinuosas e estreitas dos velhos bairros proletários onde se erguiam barricadas que em cujos telhados se atacavam com vantagem a polícia e as tropas a cavalo. Bairros proletários foram destruídos e no seu lugar criaram-se bairros pluriclassistas, assim passaram a conviver moradias modestas e outras de luxo de maneira a segmentar os trabalhadores da elite, num espaço geográfico de convivência comum. A reestruturação da cidade de Paris foi mais do que uma reforma arquitetônica com fins estético, pois se constituiu em reengenharia social de controle dos levantes populares.
Muito tempo depois, novas experiências autonomistas foram vivenciadas no século XX. França, Itália, Inglaterra e Alemanha forneceram modelos clássicos de experiências de lutas políticas autônomas entre os anos de 1950 a1970. Essas lutas que se alastraram pelos locais de trabalho, nas fábricas, nos escritórios, nas oficinas, decorrentes do surto de industrialização promovido pelo plano Marshall e o programa GARIOA, no pós Segunda Guerra Mundial que fomentou a formação de uma classe trabalhadora oriunda do campo e bastante diversificada e que demonstrou, gradativamente, dominar os processos de trabalho ao ponto de criar estratégias de lutas políticas no local de trabalho, tais como: as greves de zelo, as operações-padrão, os pequenos atos de “guerrilha trabalhista” que se acumularão até a explosão do autonomismo político entre 1968 e 1972.
Das primeiras lutas contra a vinculação entre salário e produtividade, vão se alastrando lutas cujas pautas ultrapassavam o controle dos sindicatos sendo a revolta de “Piazza Statuto” seu momento mais agudo e em seguida extrapolavam o campo de ação construído pelos partidos ditos “operários” em seus pactos de convivência com a institucionalidade capitalista.
As lutas de então saíram das fábricas para tomar as universidades, os bairros, os transportes (onde passageiros recusavam-se a pagar tarifas majoradas), as telecomunicações (datam deste período as primeiras experiências de rádios “piratas” na Inglaterra, Itália e França. Se manifestam, também, nas grandes vagas de lutas promovidas pelos trabalhadores portugueses durante a Revolução dos Cravos em Portugal, em meados da década de setenta do século XX, além das grandes greves na ex DDR (antiga Alemanha Oriental) que se iniciou em 1953 e culminou na queda do muro de Berlim em 1989.
Mais recentemente, os fenômenos sociais denominados “Primaveras” turca e Occupy Wall Street nos EUA se destacam como lutas auto-organizadas de forma autônomas e que precisariam de estudos mais aprofundados para a compreensão da sua dimensão e complexidade.
Análise interessante sobre as “primaveras” no mundo e no Brasil interpretada pela pressão por participação popular encontra-se no texto “Participação Social e Manifestações de Ruas” de autoria de Pinheiro Pedro, publicado em Portal Ambiente Legal. Para o autor estamos presenciando uma crise institucional ocasionada pelas manifestações em massa nas ruas e praças, não só no Brasil, porque não é uma crise isolada, mas ondas de protestos similares estão acontecendo em todo o mundo, ocasionando crises em graus variados na estrutura de governança dos países atingidos.
As lutas políticas autônomas se distinguem dos movimentos sociais coletivistas tradicionais, principalmente porque elas provocam a reorganização das instituições sociais impondo-lhes novos padrões estruturais de organização que são difíceis de serem recuperados. Essas lutas exigem sempre a criação de complexos mecanismos de controle social impossibilitando o retorno a ordem disciplinar rompida. De outra forma, as contendas que ocorrem no âmbito dos movimentos sociais tradicionais, por já serem apropriadas, não exigem reorganizações políticas profundas.
Exemplo são os sindicatos de trabalhadores, o seu surgimento foi resposta do capital às lutas individuais de sabotagens que eram travadas nos locais de trabalho nos primórdios do capitalismo industrial. Organizar coletivamente os trabalhadores em instituições externas às empresas por meio de organizações sindicais foi a resposta complexa para as lutas individuais dos trabalhadores que ameaçavam constantemente romper o controle da relação social com base na lei do valor e que rege toda a produção capitalismo.
A história tem mostrado que o poder de recuperação tem sido maior do que a capacidade de ampliação da autonomia que se converteriam em relações sociais de solidariedade de tipo novo. A segmentação dos insurretos em sindicatos profissionais e em partidos operários e o consequente controle de suas lutas por vanguardas são os sintomas da degenerescência e, portanto, da apropriação da luta política. Conforme mostrarei a seguir.
ATIVISMO INDIVIDUAL COMO RESISTÊNCIA NO LOCAL DE TRABALHO
As lutas políticas individuais sempre existiram na economia capitalista e a sua prática era comum no processo de trabalho nas fábricas do período do capitalismo industrial. Defino-as como individual porque é espontânea na medida que não envolve um coletivo sistematicamente organizado, como por exemplo os partidos políticos e os sindicatos, que nesse momento histórico nem existiam como organizações políticas sistematicamente organizadas como as de hoje.
As contendas individuais originam-se da percepção que o indivíduo tem acerca da coerção que lhe é imposta no processo de trabalho pelos mecanismos disciplinares da gestão do trabalho. Nesse processo, os trabalhadores de forma individual criam ideologias e práticas defensivas que visam aliviar o sofrimento psíquico experimentado nas relações de trabalho, tais como: jornadas extensas, monotonia na realização das tarefas, além da vigilância ostensiva que visa o aumento da produtividade do trabalho.
O sofrimento experimentado no processo de trabalho gera estresse que o trabalhador busca aliviar inventando alternativas práticas de resistência. Essas práticas envolvem um componente emocional subjetivo muito grande e diz respeito a tentativa deles de salvaguardarem a sua normalidade emocional.
As lutas individuais poderão se manifestar através de várias práticas, tais como: absenteísmo (faltas ao trabalho), consumo abusivo de álcool ou outro tipo de estupefacientes, além da sabotagem às instalações das empresas. Uma das formas mais comum de sabotagem é a fraude frente ao cumprimento das normas técnicas para realização segura e produtiva do processo de trabalho. Hoje essas normas estão expressas em manuais que contêm as regras e prescrições consideradas corretas pelos engenheiros de produção acerca do desempenho do modo operatório do trabalho realizado nos diferentes postos de trabalho e que garantem a segurança e a produtividade.
No início do processo de industrialização, no século XIX, a vigilância era pouca e quando havia estava sob o poder de supervisores ou capatazes. No romance “Germinal”, Emile Zola, refere-se a indústria mineradora e o processo de gestação e maturação doa sindicatos como resposta ao controle ostensivo pela repressão às lutas individuais no local de trabalho. O romance é um bom exemplo que mostra como nasceu o coletivismo sindical como modo de organização de lutas dos trabalhadores para fora do local de trabalho que objetivou acabar com a sabotagem.
A palavra sabot, que originou a palavra sabotagem, vem do francês e numa tradução mais próxima para o português significa tamancos, um calçado barato usado pelos operários franceses no início do Século XIX. À proporção que os trabalhadores percebiam o avanço crescente das tecnologias no processo de produção que lhes roubavam os postos de trabalho, estes respondiam jogando os calçados nas máquinas. Como elas eram frágeis, o intento de fazê-las e junto a produção, tinha bastante sucesso.
Com o desenvolvimento do capitalismo, as máquinas evoluíram, as vigilâncias no local de trabalho se tornaram ostensivas com a gestão taylorista, o que obrigou os trabalhadores a se organizarem de forma mais coletivas e, paulatinamente, a abandonarem as lutas individuais.
Os sindicatos e os partidos operários foram as grandes organizações coletivas de lutas que surgiram em respostas as novas e sofisticadas formas de controle disciplinar implementadas pelo capital e o seu desenvolvimento implicou numa profunda reorganização do capital e das formas de gestão do processo de trabalho.
SINDICATOS E PARTIDOS POLÍTICOS, COLETIVISMO PASSIVO
A negociação entre o capital e o trabalho via sindicatos estimulou a criação de formas de gestão complexas que implicou na apropriação do componente ativo, a participação direta, nas práticas sociais de lutas dos trabalhadores no local de trabalho. Como exemplos dessas novas formas de gestão podemos citar todas as variantes da Escola de Gestão das Relações Humanas de Elton Mayo e mais recentemente a Gestão do Conhecimento de Stewart, Sveby, Edvisson e Malone e Nonaka & Takeuchi. Todas citadas como o modelo de gerência das organizações do conhecimento e da apropriação intelectual do trabalho.
Outra forma de apropriação das lutas individuais foi a criação de partidos políticos operários e comunistas que convergiram as lutas políticas dos trabalhadores para o parlamento.
O modo de produção capitalista é capaz de negociar tudo, menos a extinção da sua existência, deslocar as lutas políticas para o parlamento foi a maior das vitórias do capital sobre o trabalho, na medida que suprimiu o caráter ativo das lutas individuais por organizações coletivas com forte estruturação burocrática, afastou os trabalhadores da participação política direta tornando-os espectadores passivos frente as reivindicações. Sob o controle dos partidos políticos e sindicatos vinculados a rigorosas regras de participação, a delegação de poderes ficou restrita às vanguardas.
Observa-se nesse início de século uma crise dos modelos coletivos de organização de lutas.
Vários fatores têm corroborado para esse processo.
A globalização da economia via rede por meio da integração tecnológica das empresas parece romper as fronteiras dos Estados Nação (Estado Restrito), colocando em xeque a sua soberania. Esse fenômeno tem refletido negativamente nas políticas que se desenvolveram através de modelos institucionais tradicionais, como as dos partidos políticos e sindicatos que cada vez mais parecem perder sua força à proporção do enfraquecimento da soberania do Estado Nação (Estado Restrito), seu campo de atuação política. Além do mais, o difícil controle de quem delega sob as práticas políticas dos representantes parecem favorecer a corrupção em detrimento da lisura e da ética parlamentar.
Quanto aos sindicatos, a delegação de poderes às vanguardas facilmente conduz a burocratização, a tendência aponta para um amplo processo de deterioração dessas instituições e a perda de sua representatividade junto aos trabalhadores.
São exemplos históricos os casos da central sindical DGB (Deutscher Gewerkshaftsbund, Federação Sindical Alemã) e a Histradrut (Federação Sindical Israelense) que construíram verdadeiros holdings empresariais a partir das contribuições dos milhares de trabalhadores a elas filiados. Exemplos equivalentes podem ser também encontrados nos EUA, México, Suíça e Reino Unido, onde o não controle das gestões gerou verdadeiros proprietários, até mesmo com a compra de capital acionário de empresas. Os trabalhadores, na realidade, não são proprietários das ações, uma vez que não decidem sobre os destinos dessas empresas, assim estas propriedades são apenas formulações jurídicas e, portanto, ideológicas.
O mesmo acontece no Brasil com os Fundos de Pensões, que se serviram das contribuições dos trabalhadores para financiamento de shoppings centers e supermercados. Estes sindicatos, hoje, se tornaram “braço direito” do capital e funcionam como verdadeiros administradores do mercado de trabalho. Isto é, como gerenciadores da força de trabalho, favorecendo mais os interesses do capital em detrimento dos trabalhadores.
Este é o ônus que os trabalhadores enfrentam ao delegar simplesmente o poder de gerenciar as cotizações sem o controle das gestões sindicais.
AUTONOMIA CIDADÃ, A RETOMADA DO PROTAGONISMO POLÍTICO NAS LUTAS
Pode-se afirmar que no Brasil, a mudança de paradigma de organização dos movimentos sociais tradicionais iniciou-se no ano de 2003 a partir das lutas pela redução da tarifa dos transportes públicos em Salvador no Estado da Bahia, mais precisamente em agosto deste ano. O evento foi denominado de “Revolta do Buzú” e mobilizou centenas de pessoas por vários dias. Manifestações semelhantes aconteceram no Estado de Santa Catarina nos anos entre 2004 e 2005.
Cinco anos depois, entre 2010 e 2013, recrudesceu com o “Movimento Passe Livre” em São Paulo e Rio de Janeiro tomando proporções gigantescas. Com o slogan “A vida sem catraca” e “Não é apenas por 20 centavos, mas por direitos”, reuniu milhares de pessoas em todo país tendo como mote a reivindicação da redução das tarifas do transporte público em São Paulo.
Distintos dos movimentos sociais tradicionais, essas práticas de lutas políticas se caracterizam pela espontaneidade, ou seja, se organizam sem dirigentes e dirigidos e possuem caráter amplamente popular. O chamamento se faz a partir de lideranças não permanentes fazendo aflorar o protagonismo direto da população.
Depois do Movimento Passe Livre (M.P.L), outros movimentos políticos com características semelhantes seguiram-se promovendo imensas manifestações estimulados pela luta contra a corrupção e o impeachtment da presidente Dilma Rousseff, alguns conservando as mesmas características de auto-organização como os dos movimentos que os precederam.
As lutas políticas contra a corrupção ocorreram em março de 2010 se expandindo para os anos seguintes. Nos dias 15 de março e 12 abril de 2015 e 13 março e 17 abril de 2016 registraram os maiores protestos de toda a história dos movimentos sociais no Brasil. Nestas datas, em todo o Brasil, milhares de pessoas saíram às ruas para contestarem o governo federal pedindo a sua saída.
Com pauta reivindicatória muita clara, os manifestantes, muito mais de dois milhões no dia 15 e mais de 780 mil no dia 12 abril e 6 milhões em 13 de março de 2016 – pese a divergência na cidade de São Paulo entre Datafolha e a Polícia Militar em 2015 – a verdade é que desde o movimento social das “Diretas Já” e do “Fora Collor”, em meados dos anos oitenta do século passado, nunca se viu de forma sincronizada, pois aconteceu em várias capitais e cidades do interior dos estados brasileiros, manifestação ordeira, civilizada e auto- organizadas, isto é, sem a condução de partidos políticos e sindicatos essas lutas revelaram que os padrões tradicionais de organização políticas da sociedade estão mudando drasticamente para a retomada do coletivismo ativo que envolve a participação direta de todo o processo de decisões pelas massas populares.
Há de se destacar que embora movimento social de massas e coletivista, as manifestações das “Diretas Já” e “Fora Collor” tinham adesão dos partidos políticos da situação e da oposição, além da participação dos sindicatos que se estabeleceram como vanguardas e, portanto, mantinham o comando da organização prevalecendo a verticalidade na condução da luta e assim longe estiveram do autonomismo.
De outra forma, as lutas de natureza autônoma marcam o início do surgimento de uma nova prática de organização política no país, que denomino de AUTONOMIA CIDADÃ. A autonomia cidadã tem como característica a horizontalidade no processo de organização social da luta política em oposição a verticalidade que é o paradigma de organização dos movimentos sociais tradicionais. Nas organizações políticas tradicionais, a pauta reivindicatória se forma a partir da condução das vanguardas que se tornam permanentes e são estruturadas de forma burocrática. O processo decisório ocorre do topo para a base e as relações sociais de poder são assimétricas, dos dirigentes para os dirigidos.
O aspecto revolucionário desse tipo de luta é a sua capacidade de gerar práticas sociais que subvertem às relações sociais fundadas na representatividade com base no modelo burocrático de organização. Sem a participação dos partidos políticos e dos sindicatos, essas lutas estabelecem uma nova forma de fazer política, reinventa a política em formas institucionais que subvertem as de cunho tradicionais. Ulrick Becker (2012) as denomina de subpolíticas e evoca para essa prática um caráter revolucionário, a princípio silencioso, mas altamente transformador uma vez que resultam das práticas cotidianas dos indivíduos, estabelecendo permanente confronto de diversidades até que convergem para grandes lutas de caráter autônomo como as que presenciei na antiga Alemanha Ocidental em 1986. À princípio era um descontentamento com a inflação frente a estagnação dos salários, insatisfação que levou a população a se organizar por meio de comitê de bairros e não por categoria profissional conforme os sindicatos.
No Brasil, formadas a partir de vários grupos espontâneos, sem divisões hierárquicas, exatamente como se sucedeu nos protestos do dia15 de março de 2014, as lutas autônomas vêm se desenvolvendo desde 2003, a princípio com reivindicações difusas como os movimentos de junho de 2013 que tinham como mote a redução das passagens dos transportes públicos, as reivindicações se ampliaram para exigir mudanças complexas como a deposição de gestores de alto escalão da administração pública, ao mesmo que inovam, na medida que criam novas formas de participação que não a via parlamentar por delegação de representações.
Muita gente imagina que no capitalismo contemporâneo, o Estado se restringe às tradicionais instituições formadas pelo executivo, legislativo e judiciário. Para muito além disto, na atualidade, o Estado se ramifica para toda a sociedade impondo como forma de organização institucional o padrão vertical, com forte estrutura hierárquica disciplinar que cinde politicamente a sociedade entre os que comandam e os que obedecem.
Todas as organizações que se estabelecem neste padrão se inserem no âmbito do Estado capitalista. Sendo assim o Estado não só organiza o jogo, mas também estabelece as regras.
Max Weber mostrou que a burocracia surgiu antes do capitalismo, mas é nesse modo de produção que a burocracia se estabeleceu como racionalidade instrumental capaz de englobar toda a sociedade e disciplinar todos os conflitos sociais mediando-os dentro da ordem institucional do Estado. Conforme Pinheiro Pedro (2014):
…estamos presenciando a transição do tradicional Estado Nacional, republicano e democrático, baseado no regime representativo, cameral, constituído por poderes independentes (legislativo, executivo e judiciário), cartorial e burocratizado, para um novo Estado Nacional, republicano e democrático, porém baseado em um novo regime participativo, mais dinâmico e consentâneo com a realidade tecnológica e interativa vivida hoje por nossa civilização. Um Estado globalmente articulado e focado num ambiente de regulação, de controle social sobre serviços, poderes e bens. (s.d)
A democracia moderna, com base na representação política indireta, foi a maior resposta de apropriação das lutas coletivas ativas empreendidas pelos trabalhadores, porque segmentou-os ao mesmo tempo que os disciplinou para a atividade política coletiva passiva. O sufrágio universal por meio do voto e da representatividade indireta é um modelo em crise, no mundo, e a resposta as lutas autônomas no Brasil, será a reforma política cuja amplitude desconheço, mas posso afirmar que pelas experiências históricas recentes será uma reforma política de grande amplitude que dará vazão cada vez mais a participação popular direta na gestão e controle da administração pública e privada, aprimorando a democracia participativa de massas.
Referências
BECKER, U. GIDDENS, A. SCOTT, L. Modernização Reflexiva. Fundação Editora da UNESP. São Paulo, 2012.
BERNARDO, J. A Economia dos Conflitos Sociais. Editora Cortez. São Paulo, 1999.
MARX, K. A Guerra Civil na França. Editora Boitempo, São Paulo, 2011.
NUNES, M. Lutas e Movimentos Sociais de trabalhadores docentes: integração e desintegração das formas organizacionais do trabalho docente. ANAIS do XIII doSeminário Internacional de Formação Docente. UFRGS, Porto Alegre, 2014.
PINHEIRO PEDRO, A.F. Participações Sociais e Manifestações de Rua. Portal Ambiente Legal. São Paulo, 2014.
WEBER, M. O que é burocracia? Conselho Federal de Administração. Brasília, 2014.
(*) Marilene Nunes é doutora em Gestão e Políticas Públicas (USP), mestre em Economia Política (UFRGS), especialista em Gestão do Conhecimento (FGV) e graduada em Pedagogia (UFRGS). Especialista do Conselho Estadual de Educação (CEE-SP). Atua em vários programas de pós-graduação no Brasil e no exterior. Articulista no Portal Ambiente Legal.